terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Retorno anti-horário sob chuva nº5.


Um Josias parou à borda do meio fio – fronteira tornada palpável entre cotidiano e ameaça pelo afluxo abrupto de precaução, sinapse a sinapse –: pendia à faixa de pedestres segurando a vertigem do asfalto lá embaixo com a tenacidade desgarrada da garganta que retém um vômito, ao decidir dar a volta, não atravessar aquela rua. O desdém de um ou outro automóvel escasseado pela manhã de domingo, avaliza o arroubo que, mais do que medo remoto aflorando, é apenas pelo momento em si. Um provável detalhe mal percebido e mal expresso, estopim de uma série de processos cujo ápice seria dissuadir o Josias de que seria mais barato e proveitoso - plano inicial - ir comprar no mercado do outro lado da rua do que se ater à quitanda, rente à calçada que ocupava. Repentinamente obrigado a adaptar trajeto e ponto de chegada, o corpo lhe nega o caminho premeditado e usual; embora tomado de súbito pelo medo, rejeita mesmo o caminho que levaria de volta a casa, isso para entregar-se a um improviso ao qual as pernas assentem conforme executam. Não fraquejam ao passar em frente à fachada da quitanda – a negligência motora ofuscara a fome que as impelira ali, intimamente arrepiadas ao pressentir textura da areia a que rumavam. Padaria, varal, caterva de pombos, putas extemporâneas, caminhão de lixo não perturbaram a obstinação retilineamente vigorosa das pernas, obstinadas em ignorar estorvos próprios do horário: por mais difícil que fosse esquivar da mulher que o abordou. A interpelação e a ordem que se seguiram ao silêncio frio atônito do Josias antes de aturdirem o indispuseram ainda mais contra a figura de gestos afáveis, cabelo liso caindo até a cintura e saia abaixo do joelho, que o constrangia ao convocá-lo pelo nome para uma reunião para a qual o homem com quem a mulher o confundia estaria atrasado. Resolveu relevar, cogitou fuga enquanto buscava recuperar para além do alarde dos sinos o rugido das ondas que o orientava; instantes antes de uma estridência superar os outros barulhos, arrematando o incômodo de um Josias ávido por erradicar o ruído externo. Ao rastrear o vibratório do celular no bolso da camisa e atender uma enchente de perguntas em tom preocupado, inédito para ele e que o chama de amor, sobre a razão de sua demora e sobre sua localização, a calma de Josias para com externalidades provisórias se agrava: apenas negligenciou a pressão dos dedos, continuou dissimulando o passo apressado de quem ainda fugia da mulher que o chamara para a reunião de um grupo com que ele não se lembrava de ter se comprometido, tampouco viraria o rosto em busca do aparelho, pisado na pressa. O posto de gasolina se erige diante dele quase de uma vez, como miragem materializada em que o Josias tropeçaria se não tivesse recuado no tempo exato de evitar um carro que entrava a toda para abastecer, o homem a bordo xingou. Mesmo reputando impostura a tudo à exceção do estilhaço que a maré provoca nas águas, já dentro da loja de conveniência - catatônico diante do caixa: um pacote de batatinhas fritas em uma das mãos, girando uma moeda sobre o balcão com os dedos da outra enquanto esperava totalizarem o valor da compra -, enxerga em um tique de canto de boca da atendente um detalhe tão aterrador quanto pequeno, um que dá vontade de emasculá-lo com socos. O primeiro deles acerta em cheio um olho, o tombo e conseqüente escapada da mulher escoltada pelo balcão prendem o segundo soco do Josias. Um terceiro súbito que esperava na fila previne enérgico a fórmica do balcão de ser socada pelo braço do Josias, frustrado. Independentes de quanto o embotamento do Josias roubassem da nitidez e da convicção do semblante do terceiro cara, o nome que a boca do homem não parava de repetir aos berros e os chacoalhões com que suas mãos laceraram o auto-exílio surtiram o efeito desejado só no começo. A porta automática abriu-se para um Josias meio cambaleante recém-acordado. Mas o frentista, porque distraído, surpreendeu-se incapaz de refrear o roubo da moto deixada para abastecer pelo dono que - se virasse o rosto ao invés de entrar na loja de conveniência - a teria visto deixar o posto e ganhar a rua. O semáforo vermelho do cruzamento apenas condenou condescendente a conversão ilegal. Na contramão, Josias não teria como ler a placa avisando que a pista desembocaria na costa, dali a trezentos quilômetros.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O cão no telhado.

 Era mi modo de hablar
en los momentos conflictivos.
Salía por la tangente o emprendía uma enloquecida
huida hacia adelante.
Enrique Vila-Matas

Erro. Na falta de um radiorrelógio, a sina a cumprir era sempre a de singrar os corredores de pé-direito alto no escuro rezando para o dedão não topar com a esquina de um móvel ou rodapé e para os tacos velhos do piso não denunciarem a trajetória, e ir tentar a sorte nas horas do microondas. A luz do visor deixava evidentes na cozinha contornos até então inéditos, exalava um halo espectralmente azul em que eu gostava de me banhar sempre que possível. Sempre que eu não pressentisse de ouvido a presença da irmã já do corredor. E mesmo com a área desimpedida era pouco o tempo em que era seguro ficar. Levando em conta que a severidade dos castigos por fazê-lo catalisa o prazer ao infringir regras, era justamente a vulnerabilidade da condição o que me levantava da cama a meados da noite. Embora eu possa convencer com o argumento de acordar por motivos arbitrários, até falando por este viés parece ser difícil acreditar em que uma inquietude da situação em si não estimulasse. A cozinha era terreno movediço que só nos era franqueado durante os cinqüenta minutos semanais de aula de cuidados domésticos, no resto do tempo, assim como acontecia com os outros cômodos, não tínhamos o que fazer por lá. Por isso o deleite e por isso a sede como pretexto motivador: mesmo que eu, camuflado no silêncio, não tivesse coragem de puxar um banquinho para alcançar um copo no armário. E até a coragem adiantaria pouco, o filtro ficava lacrado fora dos horários de beber água.

Dúvida. A melhor parte do percurso era aproveitar a calma triunfante do caminho de volta para, joelho na almofada, afastar minuciosamente em silêncio a cortina que cobria o grande vidro que fazia as vezes de parede entre a sala de estar e o jardim. O rangido dos trilhos me levou mais de uma vez à beira do enfarte, a vista compensava e sem falar que a maciez do sofá era um conforto proibido ao longo da semana. A luminosidade do poste na calçada que transcorria rente ao portão cruzava o jardim antes de varar a vidraça e transformar a cortina numa lona branca semelhante em tudo ao telão em que assistíamos – todos os dias, religiosamente - a programas educativos e missas. O que no começo era a última atração e a mais prazerosa deste esboço de televisão virou um jogo quando descobri que esta travessia noturna e esta contemplação não eram exclusividade minha. Por variados que fossem os horários e os motivos dos outros ao vagar pela casa noite adentro, ninguém voltávamos ao quarto sem enumerar as pessoas que por um intervalo quase tão curto quanto um espasmo passassem na calçada em frente ao portão. O adiantado da hora fazia destas aparições abruptas um evento tão ansiado quanto maior fosse o perigo de ser pego assistindo. Um ranking e uma relação inversamente proporcional esclarecem as razões da popularidade deste jogo entre nós, o menino poderia ver mais pessoas passando porém correria um risco maior de ser flagrado pela irmã, caso prolongasse a sessão.

Acerto. Um dia o tráfego aflorou como se tivesse estourado uma represa. O que era raro, encontrões fortuitos nos corredores e cumprimentos com a cabeça trocados em silêncio, tornou-se mais freqüente. Conforme as noites infestadas de passinhos abafados avançavam, um murmúrio ganhava corpo. Eu quase já não saía, o menino que dormia na mesma cama tomou gosto pelos passeios e era preciso ficar para vigiar e fazer volume sob a coberta. Não sei como o padre ou a irmã não acordaram com o barulho destas movimentações, algumas coletivas inclusive. O jogo foi abandonado por desuso: ao ser flagrado, quem liderava o ranking foi movido para um quarto especialmente projetado para desencorajar ousadias, eu mesmo fui afastado. Apesar de me acusarem de mentir pontuação forjando descrições de passantes, o que me condenou foi perguntar se haveria alguém que não fizesse isso. Entraram em vigor ao mesmo tempo uma patrulha intensiva da irmã, aleatoriamente no princípio ou no fim da escada, e longas conversas noite adentro, sussurros cifrados orquestrando um motim protegidos sob lençóis. Dadas as dificuldades impostas ao plano pela escadaria e pela fechadura nova do quarto, concluíram que a saída seria um dos vitrôs que servia para ventilar e iluminar o quarto do alto, de perto da junção da parede com o teto. Foi preciso virar um colchão de lado só para alcançar a alavanca que abria o vitrô. Usaram os outros dois colchões para chegar à abertura estreita, um empilhado em cima do primeiro e o outro servindo de escada para o topo da pilha. Não pensaram em como sairiam do telhado da garagem, a questão imediata era que só um ou dois meninos eram franzinos o suficiente para a largura da abertura e o líder não era um desses. Quebrar o vidro com uma sapatada foi inteligente o bastante; enquanto a irmã se ocupasse em abrir a porta, eles achariam um jeito de pular para a rua. Só não previram que abandonariam um que quebrasse a perna no salto.

Distensão. Achado na manhã seguinte, o padre o aceitou de volta. Sobramos três para ver o regime intensificar os cuidados que a confiança nos efeitos da nossa catequese tinha negligenciado. A comunicação entre mim, o menino cuja perna quebrada diagnosticou-se como intervenção divina para o salvamento da alma e o líder do ranking passou a ser racionada também. Reservaram dois terços do dia para rezarmos e meditarmos, cada um em um cômodo. Sobrou para o fujão um banheiro fora de uso; em busca de redenção, mortificou-se ainda mais que o exigido, revelou os planos e atendeu com diligência dobrada cada instância da irmã, cujo sadismo a comodidade da situação agravou. Me foram feitas muitas perguntas, das quais me eximi mais por ignorância e desinteresse que por brio. A realidade é cara, privado de comida e banho de sol, cogitei inventar, inventei mas me senti incapaz de apresentar fatos, nomes, condições, queixas e destinos: fui contido pelo medo do empenho com que a irmã conduziria as acareações da versão que cada um tinha da história. Obviamente falhei ao tentar falar com o menino, a enfermeira dispensava a ele e a mim um tratamento ainda pior do que o que tínhamos só com a irmã, e o banheiro ficava no térreo. Obviamente interrompi mais de uma oração noturna para imaginar ou de fato distinguir, apenas com o som que o vitrô me punha a disposição, passos na calçada em frente. Competição solitária, embora o menino com quem eu compartilhava andar também devesse atualizar sua pontuação – a janela do quarto dele dá para vista para a calçada -, seria impossível comparar. Confinado a me resignar a conseqüências, considerei o esforço de inventar qualquer causa inútil.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A saliva do vento.

1. O prato é de arroz com lingüiça. O restaurante um daqueles que pululou pelas comerciais quando se notou que a lei sobre destinação de área pública viera sendo revogada informalmente havia pelo menos quinze anos. Self service comezinho em que me sento em uma cadeira na extremidade da mesa grande sem precisar pedir permissão a quem já está; parecido com os outros dois que freqüento. Positivo, são três os restaurantes entre os quais organizo os almoços da semana, desde que pararam de pedir as marmitas. Esse de hoje é perto, fica no bloco debaixo do da agência, os outros dois ficam na outra quadra e eu vou de carona com uma Eufrásia, com quem acaba não sendo lá muito agradável almoçar; graças a deus hoje me livrei da companhia dela. A outra pessoa com quem compartilho a escala prefere ficar passando o uniforme a ferro para compensar o amarrotado do dia, pede comida da agência mesmo. Eu gosto de misturar as lingüiças no meio do arroz para depois farejá-las com o garfo. A bem da verdade, o arroz é mais para baratear a coisa toda: esse é meu prato recorrentemente e sempre ao sair do buffet resta o suspense sobre se eles cobrarão a ocupação de mais de cinqüenta por cento do meu prato por carne. Uma vez cobraram. Porém devo admitir que às vezes ganho esses descontos que eles têm para o caso de o prato da pessoa pesar um número redondo, então não sei se no longo prazo acaba compensando. De qualquer jeito, volto: as terças e as quintas-feiras são deste restaurante; os outros dias são dos restaurantes na outra quadra, segundas e quartas do restaurante onde um cliente me reconheceu e as sextas são do chinês. À exceção desta semana: hoje é quarta e o restaurante das quartas estava fechado por algum motivo, a Eufrásia foi comer em algum outro lugar e eu voltei pelo meio da duzentos andando contra o que parecia ser um redemoinho no meio da quadra de esportes, o pó fustigando os pilotis e irritando minhas pupilas, irritadas de antemão pela secura do ar. Por isso ao me servir vi rostos não habituais; também por ter chegado aqui fora do horário de sempre tive de me atrasar mais ainda e subir à agência para me adiantar e vestir logo o uniforme: tenho dez minutos para almoçar e sair a campo.
2. A probabilidade é palpável de que não ter almoçado hoje valha a pena, pois as chances de o Cícero estar agora de barriga para cima bebendo cerveja, arrotando e vendo algum dos programas de futebol dos que passam no começo da tarde é alta, o que espicaça minha curiosidade, ainda mais porque ele sabe de nada. Quer dizer, saber que andou comendo gente que não devia ele sabe, muito embora possivelmente nem saiba o quanto excedeu o limite do cartão de crédito da Vilma. Aguardo ansiosa emergindo a mão num saco de batatinhas fritas que comprei na banca de jornal, sentada sob o pilotis do bloco contíguo ao do Cícero. A vista ótima do apartamento, o tempo amainando a hostilidade da secura e o silêncio vigente sob a égide dos zunidos das cigarras melhoram bastante meu ânimo. Estou com uma sede que será mitigada caso eu compre a garrafinha d’água que eu andei pensando em comprar. O problema é andar até a banca com esse poeirão, esqueci a minha e receio que os desdobramentos da história não me esperem voltar.
3. As pessoas olham estranho, no momento divido a mesa com um casal quase gordinho sentado lado a lado sem parecerem incomodados com o estrépito do ventilador sobre suas cabeças; uma garota branca de olhos puxados que não desvia os olhos do prato nem para trocar de faixa em um MP3 player, cujo volume concorre com o do ventilador; e sobrou ainda a mulher de olhos esbugalhados e gestos atônitos sentada iate de mim. É essa que está me encarando desde que interrompeu minha refeição com a pergunta sobre se o lugar estava reservado. Respondi nada e meu silêncio foi para não precisar fazê-la notar que a função essencial das mesas grandes ali era desobrigar, na hora do almoço ou em qualquer hora de afluência considerável, a comunicação entre clientes. Sentou fincando os dentes superiores no lábio inferior, desviando dos olhares que recaíram sobre ela, e achou melhor se concentrar em esgravatar algum bife do prato enorme, que interpôs – a modo de fronteira - entre a minha presença e a dela. Os outros comensais – na verdade, só o casal, a menina é alheia - são mais discretos, me olham de rabo de olho a cada minuto mais ou menos; pausada e ritmadamente dão a entender que há algo à mesa incomodando mas não esquecem de dar a entender também condescendência em não querer reparar no estorvo, por mais que o estrago já esteja feito.
4. É ele, só pode ser; mais pela roupa ridícula do que pela descrição. A Eufrásia nunca me contou que eles tinham que usar colete verde e cartola laranja em serviço, se limitou a contar que era uma firma de cobrança. Pus comida demais e ele está terminando, tenho que acelerar senão não consigo acompanhá-lo. Sei que ele vai ao meu apartamento hoje, vai agora cobrar do meu marido dívidas que ele fez para presentear uma amante. Posso flagrá-lo no momento em que esse homem à minha frente começar a coagi-lo, encurralá-lo a responder de onde vieram essas dívidas. O plano é mais eficaz do que parece, meu Cícero acha que eu estou trabalhando, ficará surpreso quando souber que há duas semanas tirei um extrato no banco e desconfiei ao ver cobrança de inúmeros buquês de rosas com que ele não me presenteou. O Cícero não trabalhar, dou uma mesada a ele para complementar a pensão por invalidez, e parasitar a minha culpa permitiu que ele fosse ainda mais espaçoso, o ócio é a oficina do diabo. Combinei tudo com a minha amiga, sorte ela trabalhar na agência. A surpresa perfeita. Um casal à minha esquerda também olha para o ridículo de esguelha de vez em quando, pelo menos assim, dando mais na cara que eu, acobertam as minhas intenções. A discrição me salva de que ele descubra meus objetivos, tanto é que não olhou para mim nenhuma vez, está mais preocupado com o barulho que o ventilador faz e com o fato de esta mesa estar um pouco apertada mesmo com uma cadeira desocupada. Pelo visto ele almoça sem pressa, embora eu saiba que a Eufrásia atrasou as coisas de modo a ficar sobrando apenas dez minutos para ele almoçar e chegar no prédio. Sem pressa a ponto de mastigar algumas irritantes, porque insolentes, vezes um solitário pedaço de lingüiça, rolando-o de um lado ao outro da boca despreocupada, me dá tempo. Algo o incomoda, sinto isso. Talvez o casalzinho aborreça com a curiosidade deles. Não sei o que poderia incomodar, vir vestido desse jeito a um lugar público é pedir para ser encarado do momento em que entra ao momento de ir embora. Eu faço a discreta - o problema é o tanto de atenção que ele chama para si, apesar de que isso, além de um problema, é o chamariz do trabalho dele. Acelero as garfadas, embora não dispense a sobremesa.
5. Ela continua me olhando depois que levanto e me apresso a ir pagar a conta. Provável curiosidade ocasionada pelo uniforme. O casal tenta disfarçar risadinhas perceptíveis. A cobrança é na quatrocentos e sete, é possível ir andando mas eu não quero sujar o fraque, a limpeza é o aspecto mais importante do impacto coercivo que o meu trabalho pressupõe. Deixo o restaurante sob uma salva de sensações constrangedoras de estar sendo observado: apupos invisíveis, palpáveis. Insiro a chave na ranhura, os dedos da mão esquerda chafurdam o bolso atrás de moedas que, não encontradas, digo para o flanelinha que ficarão para a próxima. A mulher de olhos esbugalhados sai quase junto comigo, o gemido de metal de pulseiras entrechocando atrai a atenção para todo mundo perceber ela se afastando; retribuo o sorriso entre acanhado e repreensivo dela com um meneio da cartola segundos antes de entrar no carro. Estacionaram em fila dupla atrás de mim, que apesar do atraso sempre achei uma vaga regular. Três minutos dos dois que eu tinha foram gastos em esperar o condutor vir tirar o carro. O véu de poeira de vigente cascateando do céu para o chão me permite enxergar escassos três metros adiante. Tomo o eixão, uma aglomeração insuspeitada de carros na entrada para a comercial chegou perto de impedir que eu descesse na sete. Eu vinha pela esquerda para tentar contornar os carros e entrar só mais na frente. É tranqüilizante no trânsito olhar o jeito de dirigir e mesmo o rosto dos outros motoristas e tentar desvendar que tipo de dívidas terá, e se para o pagamento de alguma delas os meus serviços se fariam necessários. Desnecessário dizer que eu não tirar a cartola ou o colete para dirigir também suscita certa atenção de parte de outros motoristas. É mais fácil me deixarem entrar ao sinalizar com a mão direita se esta mão direita estiver coberta com a luva couro italiano branco. Também é desnecessário dizer que o calor e a sensação de poeira que o suor empapou entre a pele e as roupas já me fizeram pensar em largar tanto a profissão quanto a cidade. Embora pouquíssimas outras tarefas pudessem ser compensadoras como essa é. Checo um endereço transcrito em garranchos num papel que deixaram sobre a minha mesa e que agora tiro do console do veículo. Eventualmente dão o espaço de que preciso para entrar com o carro, consigo descer a tesourinha. Estaciono nas comerciais das duzentos pois fica perto e torna mais fácil a saída; em caso de imprevisto não preciso manobrar nas vagas esquálidas para moradores do prédio. Abro o porta-malas e retiro a maleta e a bengala. O brilho do sol no castão trabalhado em estanho na forma de cabeça de um leopardo chama a atenção das pessoas, com uma cegueira momentânea. As rachaduras na calçada por entre as quais viceja um tipo de mato acompanham os passos que demoro até o prédio, a poeira adensa nas minhas narinas. O prédio não tem porteiro¸ só guarita vazia. Toco o interfone do apartamento, espero que ninguém atenda e eu possa ir embora. A campainha soa, irrespondida, por quase meio minuto.
6. A coisa toda ficaria valendo menos a pena se eu não estivesse aqui para assistir. No que eu marquei a cobrança e liguei para avisar a Vilma, verifiquei os meus horários e agendei minha folga. Ninguém interpelou desconfiado até agora, escondida atrás do carro posso ver a movimentação morna de gente entrando e saindo na quadra, posso ver o vento suscitar redemoinhos aqui e acolá ao falhar em infiltrar janelas devidamente seladas. O apartamento do Cícero é no primeiro andar e do lugar em que estou dá para ver obliquamente o nervosismo dele andando de um lado a outro do apartamento, as mãos nas costas, os olhos não sabendo onde pousar, os passos vagarosos de deter-se e espanar um pó imaginário de objetos, virar-se a procura de mais um objeto para escarafunchar com os dedos ávidos por sei lá o quê. Os devedores são avisados da visita dos nossos cobradores com vinte e quatro horas de antecedência. Ele morar logo no primeiro andar facilita as coisas, eu quero assistir a vergonha. E não só o constrangimento, de praxe e que o cobrador está habilitado a infligir; me refiro a uma vergonha mais daninha. A Vilma não sabe que eu estarei por aqui e ainda não resolvi se ela deve saber. Ele está nervoso porque fui treinada para durante a ligação emaranhar o devedor de tal forma a que ele tenha certeza de que podemos encontrá-lo quando queiramos, e que é melhor facilitar as coisas para o nosso lado marcando um horário em que se esteja disponível.  O Cícero concordou rápido até, apesar da exorbitância da soma que lhe será cobrada em poucos minutos.  As regras de confidencialidade da empresa me impedem de colocar o atraso do Estevão nos registros; pontualidade é uma regra cujo cumprimento cobramos que seja feita a risca. Tudo bem, vou anotar isso e compensar em alguma sanção futura, cuja arbitrariedade camuflarei. Às vezes uma lufada de poeira me atinge bem nos olhos, tenho de abaixar de novo. O dono do carro que serve de esconderijo aparece e me cumprimenta antes de entrar e partir. Nada do cobrador, que só encontro remotamente ao resolver dar uma volta, e quando finalmente avisto, o Estevão está tocando o interfone na portaria errada.
7. Ele está chamando errado, a entrada não é aquela. Está segurando um papelzinho e tentando lê-lo à revelia da poeira, mas os olhos tornados intermitentes pelas pálpebras fechando com freqüência traduzem pouco desconcerto. Melhor sair da fila dupla, nunca se sabe quando um policial desses pode surgir do meio do vagalhão de pó e detritos. Procuro outra vaga, estaciono em local proibido mesmo - se o caminhão vier esvaziar os contêineres de lixo, eu saio. A vista daqui é pior, só consigo ver a manga laranja da sobrecasaca, braço erguido possivelmente chamando o apartamento errado e me frustrando na possibilidade de ver o Cícero ser enxovalhado por um palhaço de fraque. Se bem que, pensando bem, ele não sabe que eu sou mulher do Cícero, sempre posso ir lá e perguntar se precisa de ajuda. O problema seria se a polícia multasse o carro. Desde que o meu marido se envolveu com essa amante, só eu que tenho perdido as coisas. Mantive a mesada dele mesmo depois que extratos bancários revelaram tudo; fingi ignorância até quando um brinco que mamãe trouxe do exterior para mim sumiu. O Cícero é, sempre foi, um pobre coitado, a doença dele é só mais um pretexto para arrancar dinheiro de mim e foi oportunamente adquirida ao chegarmos às vias de nos separarmos. Não pela traição em si, nos separaríamos porque apesar de ele me amar do jeito dele e eu o amar do meu jeito dedicado, a dependência dele estava degenerando meu contra-cheque. Talvez tivesse sido melhor, aí ele veio com essa tal de doença nos gânglios nervosos. No começo até intensificou os cuidados por mim; amoleci e ele se instalou de volta no apartamento com as regalias posteriores. Contratei uma enfermeira para cuidar dele durante o dia. Acho que é ela a outra, devo descobrir hoje.
8. Não atenderem ao interfone não me desobriga. O problema é justamente o prédio não ter um porteiro a quem eu pudesse entregar uma notificação de comparecimento. Uma intimação judicial seria algo extremo demais para uma firma como a minha, que age para-oficialmente. Os garranchos da Eufrásia estão quase mais indecifráveis que o habitual; apesar da preguiça supõe-se ser minha obrigação profissional e ética, além de tentar contactar o cliente continuadamente por dez minutos, tocar o interfone nas outras entradas. Nem que seja para desencargo de consciência, eram as palavras da cláusula do contrato de admissão na empresa, como se coubesse a mim e não aos clientes limpar a consciência.
9. Ele é lento demais nas coisas, a roupa risível deve atrapalhar. Pelo menos parou de tocar o interfone, agora só está encarando o painel de botões enquanto dedilha a aba da cartola. Quanto ao Cícero, perdi de vista quando ele saiu da sala, deve ter ido ligar para a vagabunda de outro cômodo, por casualidade um onde não posso bisbilhotar. O idiota do fraque talvez não revele quem ela é, mesmo assim de hoje não passa. Seria melhor ir avisá-lo de que a portaria está errada; por outro lado, eu sozinha dar uma prensa no Cícero tampouco cairia mal, a vida mansa dele dura tempo demais. Se bem que o serviço já estar pago também não quer dizer muita coisa: um cobrador que erra a entrada certamente será engambelado pelo meu marido, o qual com certeza faria de tudo para evitar ter que pagar. Pão-duro o Cícero nunca foi, ele deve estar mais preocupado com agradar sua manteúda do que com esconder evidências. Melhor para mim, pena que acaba hoje e nem tenho tempo de estabelecer entre nós um jogo de insinuações que a consciência suja dele não o deixaria ganhar.
10. A demora do Estevão em achar o apartamento infringe normas demais ao mesmo tempo para não soar proposital. Ainda mais sob um vento e uma poeira como estes, qualquer um teria preferido entrar a ficar olhando o painel do interfone feito um aparvalhado. Qualquer um menos o cobrador, que ignorou gente abrindo a porta chegando e saindo em prol de identificar o devedor. Cheira a má-fé, no mínimo a má-vontade. Passando rente, entre um carro mal estacionado e a escada que dá acesso ao pilotis, enxergo um último pássaro; refugiando-se em uma abertura do cimento, a probabilidade de que preveja melhor que eu um derradeiro golpe da poeira levantada pelo vento é alta. Subo a escada sem que o Estevão me veja, meus olhos de relance recaem sobre uma cabeça também espiã das ações dele. Do alto do pilotis reconheço uma cabeleira de mulher, parcialmente recoberta por uma lataria, ajudada pelo brilho que o sol incidindo provoca. Ligo pouca importância, mulheres bisbilhoteiras há em toda quadra e alguém com o uniforme que nossa empresa adota chama bastante atenção; mesmo se a minha suspeita for confirmada, e a mulher for a Vilma – o que não muda nada porque ela ficará quieta, assistindo-, remotíssima a chance de ela influir em algo, a não ser que o cobrador preste mais atenção a rabos de saia do que ao trabalho, fato verificável.
11. Suspira ao sentar, irregularmente, sobre a barra superior da grade fronteiriça entre o pilotis e o jardim. Olha em volta, aperta os olhos contra a poeira que insiste em invadir sua zona de conforto. No que alguém que um xale protege da poeira surge na frente dele, ele volta a pisar no chão: o corpo retesado numa aparente continência. Hierarquicamente, o cobrador deve ser o subordinado: quanto mais gesticula, mais os movimentos de sua interlocutora vão se restringindo a meneios curtos de cabeça. Pela expressão dele, não posso afirmar que ela assinta a alguma coisa: desde sua aparição, ele não parou de falar e de todo jeito a cara dele é a de alguém sendo duramente censurado. A mulher cujo rosto para mim está coberto por cabelo esvoaçando, espera pouco, age antes de dar tempo para ele sentir-se confortável em olhá-la nos olhos. Visivelmente constrangido, o cobrador tem o antebraço empurrado com uma leveza firme por ela, quase à guisa de sugestão. Os dois caminham bastante juntos em direção às outras entradas do prédio, onde não posso vê-los por causa da minha posição desfavorável. Prefiro ficar aqui a perder uma volta do Cícero à sala do apartamento. Uma volta cujo deleite consistiria mais em flagrar sua preocupação do que ser voyeur sem que ele detecte minha presença. A conservação da beleza dele não é o foco hoje, eu poderia até assistir ele comendo a tal amante, contanto que segundos antes do orgasmo eu percebesse no rosto dele uma ruga que fosse de preocupação, remorso.
12. Anotei o endereço errado no formulário. Um instinto de preservação pode ter guiado meu relatório prévio, e depois meu senso acusatório. No cenário presente eu trocaria fácil poder esculachar o Cícero por mim mesma, antes de expô-lo à inépcia de alguém uniformizado de laranja e verde-limão. Estou disposta a relevar as traições dele, embora cumpra exigir algumas medidas anteriormente à reconciliação. Se ele recusar pior para ele, tenho a faca e o queijo na mão. Enquanto incentivo um Estevão, a cuja surpresa sobre minha presença aqui não reajo, mostrando qual é a entrada certa – a porta destrancada facilita -, pondero sobre a irresponsabilidade da Vilma: ela está jogando a vantagem do elemento surpresa no lixo aqui, e isso movida só por despeito. Fosse eu, a partir do momento em que deixasse de amá-lo, agiria com maior frieza: ficar na espreita maximizaria meu ganho. Sempre me encarreguei deste tipo de pensamento na amizade, isso explica eu ser a amante e ela quem financia isso. Abro a porta de vidro, as mesuras cavalheirescas do Estevão para que eu entre parem uma idéia, incubada pela curiosidade inoportuna da Vilma. O saguão exíguo está arejado: no trecho da escada que liga o pilotis ao primeiro andar há duas basculantes esquecidas abertas, para ventilar – é duvidoso que consigam -, filtrando a parcela de poeira destinada ao piso da escadaria do prédio.
13. O pedido da Eufrásia não é de todo descabido. A despeito da irreverência do que ela apresentou como método moderno; levando em consideração o perfil psicológico do devedor, amaciar a situação por meio do uso de uma mulher como iniciador pode funcionar melhor do que o esperado. Sussurrando para que o assim chamado Cícero não anteveja a iminência da nossa atuação, combinamos a minha entrada para cinco minutos após a da Eufrásia, cuja desculpa para ser recebida por ele será a de que a espera por uma amiga que vive no apartamento em frente deu sede. A secura da cidade perdoa todo tipo de pecado, inclusive o de abrandar as defesas um devedor para depois aproveitar a guarda baixa e vir com carga máxima. Eufrásia garante que este método foi testado com eficácia na Europa. Ela prende os cabelos em um coque alto, levanta ligeiramente o cós da saia para evidenciar mais as coxas e repassa um batom mais vermelho que a poeira levantada nesses dias. Pergunta se está bonita antes de recomendar que eu saia do caminho; de preferência me refugie no saguão até dar os cinco minutos combinados. Ao descer, sapatos estrondosos quase põem o plano por água abaixo; durante o caminho escada abaixo movo os lábios desejando uma boa sorte à Eufrásia cujo entendimento espero que ela seja capaz de desempenhar usando leitura labial. Antes de virar à direita na espiral da escada ainda presencio um retoque de última hora na roupa, ela ajeita o sutiã com um esgar de satisfação.
14. Com um esgar de satisfação e não de medo, o Cícero atravessa a sala sem camisa, vindo do quarto. Para se ter uma idéia, o apartamento é tão baixo que posso ver as gotículas de água pontilhando o rosto dele, remanescentes do que suponho ter sido um banho ou no mínimo uma passada de água no rosto. A cara de quem domou aflição, num passo tão sincero e entregue que me faz me perguntar se ele pode ter limpado o dinheiro da minha conta sem eu perceber. A campainha me lembra que o Cícero nunca olha através do olho mágico ou pergunta quem é. Isso, hoje, aumenta o constrangimento e o espalhafato daquilo por que paguei e que me postei para assistir. Sede do cão, ainda mais vendo o cabelo dele reluzente de água de há pouco tempo. A verdade é que eu não sinto a menor vontade de estar lá agora, a única intenção agora é aliviar o calor abafado. Abre a porta, o cobrador demora um pouco para entrar, bem que acho estranho o sorriso que ele abre de ponta a ponta. Frações de segundos depois já me desenganou; puxou pela cintura e lascou um beijo em uma mulher que identifiquei pelos cabelos cobrindo parte do rosto como sendo a mesma do pilotis e que mais tarde identifiquei pela canalhice como sendo a minha amiga que sempre quis as coisas que eu tenho. Sem palavras, Cícero arrancou os botões da blusa dela ao abri-la tão de supetão quanto fez com a porta e começou a beijá-la de novo, pelo pescoço desta vez. Os braços dela no começo fingem que tentam repelir os dele, até caírem submissas a uma força que ela quer que seja maior, a qual termina por deitá-la em um sofá cuja visão plena o encosto me veda. Ainda por cima largaram a porta aberta os dois desgraçados. Preciso evitar que a vizinhança saiba disso tão escancaradamente. Um vulto passa de raspão pelo corredor, distingo a sombra alta e mais nada.
15. Cinco minutos resultam insignificantes pra a rotina de um prédio desses, pacato das quatrocentos. A maior mudança percebida foi o incremento da intensidade do vento, com um ou outro redemoinho atingindo altura maior que a minha. Menos mal que a me posicionei estrategicamente: resguardado das intempéries pelo vidro do saguãozinho e prestes a executar logo o serviço para poder ir embora de uma vez. Serviço esse de que a minha amiga Eufrásia já realizou grande parte. Algo me diz que chegando lá encima, o pobre vai estar tão entregue aos encantos da Eufrásia que entregará dinheiro e assinatura sem pestanejar. É bom sair mais cedo às vezes. Subo as escadas ouvindo o vento rumorejar através das frestas das basculantes. A porta de madeira está providencialmente aberta. Enquanto isso ouço o baque da porta de vidro do saguão. A sala está vazia, o que vejo é um pássaro empoleirado no parapeito da janela e uma trilha de gotas de água sobre a passadeira que é a trilha entre a porta aos sofás. Não obstante o paradeiro desconhecido da Eufrásia, ruídos vêm de dentro do apartamento, quase superando o das cigarras, que recrudesce. Bato palmas para ninguém. O eco vibra e, se desceu as escadas, dificilmente escapou de tropeçar nos olhos esbugalhados dela.
16. O Cícero, impassível, acredita piamente em que o Estevão não terá coragem te mudar o comportamento de palmas para invasão de domicílio. A estratégia usada é clássica e ainda insolúvel para nós, basta ignorar o cobrador até ele desistir. Por via das dúvidas, ele me trouxe para o quarto da empregada. As chances de ele comer a empregada nesta mesma cama em que agora o espero são altas. Me resigno a ser a principal; sem pedir mais atenção do que a que ele me daria, fica mais fácil controlá-lo de um jeito subliminar. Não é difícil conseguir as coisas sem ferir os brios de um homem: o Cícero, por exemplo, está trazendo um copo d’água e um lençol limpo neste instante. A solução é chantagear em troca de sexo, são incríveis as coisas que ele faz por ter pernas abertas. Ao voltar vou fazê-lo acreditar que ele teve a idéia de me presentear com algo que ainda vou decidir. Chamo por ele.
17. A cartola absurda e o colete incompatível com esse calor me obstruíram a entrada por pouco tempo. Simultânea à pergunta sobre quem ele é, ouço gritarem o nome do meu homem dentro do apartamento. É voz de mulher. O cobrador não me reconhece: nem lembra que era eu no restaurante. Entro incólume, a despeito das perguntas dele acerca do Cícero. Sem ser convidado a entrar, ele me segue e senta em um sofá com as pernas cruzadas e a mão sobre o joelho. Não tenho tempo para idiotas que não desejo matar. No nosso quarto o Cícero não está, nem no escritório. A nossa sorte em não ter grana para comprar um apartamento maior é a pequena quantidade de aposentos em que ele possa esconder mulheres.
18. Apesar de ter machucado o meu pequeno, não tenho coragem de revidar. Ela destila sua fúria não contra o Cícero – apesar de descontar fisicamente nele -, nem contra mim. O problema dela é contra um arranjo que ela inventou que nós fizemos para ficar com o dinheiro dela. Por mais acabada que a amizade esteja, ela não tenta me agredir em nenhum segundo. Na verdade, a violência dela restringe-se a bater impotentemente com as mãos fechadas no peito do Cícero, que poderia dominá-la facilmente. As lágrimas dela confundem-se no piso com o rastro de gotículas que ele deixou. E soca e hesita antes de um pontapé que acaba desferindo. O semblante do Cícero é mais o de alguém que contém riso que um de contrição e arrependimento, cada um sabe a mulher traída que tem. O machucado ao qual me refiro é um corte no supercílio. Ao vê-la dentro do apartamento, o meu querido deixou cair o copo e no susto passou a mão pelo rosto no nervosismo. A mão retivera um fragmento ínfimo de vidro e propiciou um filete de sangue descendo pelo canto do olho, escorrendo pela bochecha e indo empoçar sob o queixo. A mulher continua descontando raiva nele, as mãos quase negligentes agora porque a preocupação com o sangue a distrai. Não deixa de ter lá sua graça vê-lo andando de costas com cuidado para não pisar nos estilhaços, recuando das pancadinhas com que ela o perseguindo.
19. Primeiro sinto uma pancada na nuca e considero fechar a janela para evitar pedradas desses vândalos das quatrocentos, mas já é tarde. Chega a mim como um redemoinho espesso, a sensação de ser engolida por um liquidificador. A concisão do tal Cícero veio tão fora de hora e resultou tão inútil quanto a minha metáfora pronunciada em voz alta. No instante em que refreia a fúria fingida da esposa para fechar a janela, objetos começam a inundar a sala: um retrovisor, um pote de margarina, uma casca de banana, um filtro de café com borra, diversas caixas - originários de um contêiner de lixo que o vento virou - e até um inverossímil pássaro: a sucata revestindo o tapete enxovalhado imundo e a vaga imensa de poeira erguida pelo vento arremetendo contra o prédio dissipam um pouco os ânimos, a ponto de o Cícero arriscar um sorriso para a mulher e um abraço que ela aceita durante pouco tempo. A indiferença do casal em vias de reconciliação me exila no corredor de entrada retirando-se para cozinha. Posso ouvi-los discutir sobre reembolso e é nítido o contraste, o tom geral de voz acalma, enquanto recrudesce a fome com que a terra vermelha come os pés do móveis, deixando visíveis deles apenas o que estiver a uns bons dez centímetros do chão. Ao que parece, por motivos que não me foi dado escutar, a mulher vai aquiescendo aos poucos; terá que pagar o sinal dado para autorizara realização do serviço, o galão de água mineral que o Cícero deixara pendurado, e mais o cartão de crédito, sem esquecer uma conta atrasada. Ouço uma terceira voz, chamando o Cícero, que identifico como sendo da Eufrásia, a cujo som a esposa reage com naturalidade chamando a minha secretária pelo nome. Visivelmente alarmado com o reconhecimento das duas mulheres, ele diz que tem de ir ao banheiro limpar o sangue e sai da cozinha fechando a porta para proteger as duas do vento. Já atravessando a sala rente à parede mais afastada da janela olha em torno de si como se certificasse da presença de alguma coisa ou quisesse testemunhar algo que planejou: anda na ponta dos pés palmilhando intuitivamente o melhor caminho através dos detritos e móveis revirados, acumulados na sala toda em pilhas de altura razoável.

20. Não faço idéia do que está acontecendo, só espero que o Cícero me deixe sair logo daqui, ou que ele volte. Parece que houve pancadaria neste apartamento ou no do vizinho, barulheira de coisa caindo no chão e quebrando. Se o Cícero não vier logo falar comigo, eu pulo da janela do quarto: é baixo, o problema seria rasgar as meias. Estou com muita sede e um pressentimento ruim, de que estão batendo na porta do quarto há muito tempo e eu não faço idéia de quem seja. A vó morreu assim, com o entrevamento desafiado por passos atrás da porta que toda noite tentava adivinhar de quem era. Se o Cícero não vier logo, hoje vai ser o último dia para ele.

21. A porta fechada abafar os sons esconde de mim as vozes das mulheres por pouco tempo. É o Cícero abrir a porta do banheiro e, consigo vê-lo inclinado sobre o batente de uma banheira, descerrar uma cortina com o vagar de quem espreita e se delicia que eu recupero as vozes de mulher, pelo menos uma delas. Uma que se dirige ao Cícero com estridência e à qual ela responde com um chiado e um indicador em frente à boca, pedindo silêncio. Tudo indica que é uma mulher o que desembarca da banheira, começo a identificar pelas pernas revestidas de meia-calça branca, em seguida flagro o braço do Cícero com o braço de uma outra pessoa a reboque; embora movam a boca, a janela que me esqueci de fechar provê a totalidade do som ambiente. A mulher que a banheira acaba de dar à luz veste branco apenas – com exceção de uma cruz grosseira e vermelha estampando o alto de um quepe branco ele mesmo - e toma tanto ou mais cuidado que o Cícero ao cruzar na ponta dos pés, mãos dadas com ele, o corredor para atingir a subseqüente sala atulhada de imundice. É simultâneo: vejo as duas abrirem a porta da cozinha para chegar à sala ao mesmo tempo em que o Cícero inicia a travessia dos escombros da sala, sempre guiando a mulher do banheiro, que é retida esperneando pelas outras duas. Dividem patrulhas: a Eufrásia fica encarregada de confinar e vigiar a mulher do banheiro na mesma ilhota do corredor de onde eu assisto a tudo, enquanto a esposa do Cícero pede para conversar com ele a sós. Não distingo muito do que vai sendo dito, mas o s gestos dela são ao mesmo tempo patéticos – em especial o convite à proximidade que ela produz usando o dedo indicador como isca chacoalhando – e sugestivos, tendendo a sedutores. Nem entre si nem comigo, a Eufrásia e a enfermeira trocam palavras: a Eufrásia, com ar de satisfeita, contempla o cataclismo revirando as entranhas do apartamento, neste instante um inverossímil ferro de passar roupa aterrissa bem perto dos pés dela; a enfermeira depois de roer unhas trêmulas, agarra a maçaneta da porta, embora saiba que o cenho severo e as mãos ameaçadora e calmamente pousadas no fim dos braços cruzados da Eufrásia não serão condescendentes com nenhum tipo de tentativa de fuga. Tomo coragem de mapear um caminho através dos destroços e ir fechar a janela, só o que retém meu primeiro passo em suspenso é um ruído vindo lá de dentro dos quartos prevalecer durante um segundo em que a tempestade amaina. Impossível ignorar um grito – começa com a indisposição de um soluço, mas é catalisado pelo silêncio abrupto e pela nova geografia de ecos que o reposicionamento dos móveis proporcionou - seguido de baque de que concluo que vem do corpo do Cícero tombando.

domingo, 28 de novembro de 2010

O anverso do facho com origem na luminária entrecortado por um vulto brusco que, ao passar voando, é refletido pelo espelho.

agrega el procónsul, "es justo que
procure ofrecerte lo que más te agrada". 
Julio Cortázar

Magali colecionar pássaros a fez perder dois maridos. O nome do primeiro deles é Justino; dedicado na medida do possível, que durou com ela dezoito anos - estáveis, diga-se. O outro marido ficou os dois meses que lhe foram permitidos pelo seu enteado Justiniano, o qual deliberava e decidia na grande maioria dos assuntos desenrolados sob o teto que compartilhava com sua mãe, no mínimo naqueles que diziam respeito a ele. Haja vista ser a preocupação de Magali, ao agradá-lo concordando com quaisquer dos seus caprichos, não aguçar os traumas que ela julga que o primeiro casamento deixou para o menino; só falta dizer que a única proibição em casa que partira dela fora a de não soltar os pássaros. Ele os odeia com espasmos de afeto de tempos em tempos mas respeita a imposição da mãe. Se não respeitasse teria se juntado à causa que seu pai iniciara uns bons meses antes da separação. O problema do primeiro marido não era com os bichinhos de estimação e sim com a quantidade de dinheiro que Magali fazia escorrer para mantê-los. Ironicamente a redução que ela promoveu dos custos teve pouco efeito, ou melhor, pouco tempo para ter efeito.
O primeiro marido desenvolveu hiperacusia tardiamente; o som da garra de um pintassilgo afivelar-se ao poleiro – e este não é o ruído mais bombástico que estes seres enjaulados são capazes de emitir - tornou-se intolerável a ponto de tirar o sono ao Justino. Valeu a máxima implícita do primeiro casamento de Magali: os pássaros, comprados, acima das decisões. O que quer dizer que aliando esta desculpa ao desgaste do casamento, obteve-se uma separação perfeitamente aceitável. O próprio ex-marido confessou seu alívio, pretextou um aposento com muita cortina e almofada, talvez preparado pela mãe, e deixou a casa sem mais. A partir daí teve início o império de Justiniano. Um menino que até então os pais achavam não ser muito propenso à fala ganhou uma voz que foi encorpando à medida que os pretendentes a marido da sua mãe foram demonstrando ser filhos da puta. A cada namorado frustrado, Magali culpar-se por ser ausente só resultava em mais espaço para o filho. Isso até o arrebatamento provocado pela paixão pelo homem que viria a ser o segundo marido.
A relativa perda de poderio acabou resultando bem para o menino, que de certa forma acatou a autoridade que Cícero prometia. Sua resistência fora grande a princípio, quando os namorados decidiram mudar para a casa dele após o casamento. Justiniano se opunha, argumentava falando de restrição de liberdade; Magali esbarrou em um impedimento, aquele com quem cujo casamento estava marcado tinha um pânico de pássaros com origem na infância. O curso de noivos ocorreu concomitante a acompanhamento psicológico: o consenso alcançado previa a locação de um abrigo seguro para as gaiolas de colibris, pintarroxos e sabiás que Magali chamava de tesouro e a decoração de um quarto do apartamento do recém-marido com motivos da banda favorita do garoto. Vale dizer que Justiniano teve pouca influência na separação da Magali e do Cícero e muita no motivo desta saída embora não tenha feito intencionalmente, o menino se afeiçoara desde os primeiros livros que aquele professor de história bigodudo que saía para a varanda para fumar trouxe.
A coisa toda começou com um espelho redondo em que Justiniano colara adesivos de bandas, desenhos e fotos que recortou de revistas de mulher pelada. O padrasto concordar em trazê-lo para o quarto novo tirando as fotos de mulheres – Cícero sendo conservadoramente estrito – deu a Justiniano duas sensações, às quais aquiesceu: a primeira delas é a de que o novo marido da mãe embora o quisesse mais comportado gostava dele e a segunda das impressões, conseqüência da primeira, foi a de sentir-se acolhido. A primeira teve por resultado a retirada de todos os adornos anteriormente grudados ao espelho, o Justiniano só manteve no espelho uma foto antiqüíssima de sua bisavó. A segunda sensação provocou um pedido, delicado porém firme; e lá foi o Cícero tirar quase todo o mobiliário do quarto do enteado para depois subir com ele escadas acima, instalá-lo e ainda prontifica-se a mudar móveis de lugar. Tudo para estreitar uma relação que começara artificial. Em suma, o Cícero fez as vontades do menino.
A coisa toda continuou com a proibição às andorinhas, araras e albatrozes ter por resultado ocasionar longas ausências da Magali, durante as quais o ciúme de Cícero fermentava, não que haja havido acusações formais. Subrepticiamente o marido acreditou ser e agiu em direção a ser possível formar com o Justiniano uma aliança contra os desvarios da mulher amante dos pássaros. Iludido primeiro conversou com a esposa, que continuou visitando os tais pássaros e voltando a altas horas da madrugada. A seguir, ainda mais possessivo, tentou convencê-la a vendê-los; e por último achou que podia impedi-la de sair de casa ou, no mínimo, fixar horários. Crendo firme em ter caído nas graças de Justiniano, não poupou palavras e gestos autoritários cuja fonte era uma desconfiança não completamente descabida. Frustrado em relação a alguém de quem estava aprendendo a gostar, Justiniano passou cultivar um ódio ao qual dava vazão por meio de distanciamento. Explodiu no dia em que o padrasto perdeu o controle e tentou acorrentar Magali à cama enquanto ela dormia. O filho acordou com os gritos estridentes e no que foi resgatar a mãe ela já não estava. No entanto, uma luz fina sob a fresta da porta denunciava Cícero, trancado no banheiro.
A tentativa de sublevação por parte do menino foi sufocada rápido; o feixe de raios coloridos, luz branca passada por prisma copiada da capa do disco mais famoso da banda que o Justiniano gosta; a luminária de leitura; a gravura do planeta Terra decalcada na parede oposta: tudo o que o menino tinha arrancado do quarto e jogado na lixeira do prédio em revolta resultara intacto. Difícil para ele, voltar de uma ida infrutífera ao depósito onde a mãe guardava as andorinhas, bem-te-vis e guaxos e perceber os objetos reluzentes e de volta aos seus lugares. Infrutífera em termos, ao sair do apartamento furioso com o padrasto, Justiniano tinha ido procurar a mãe, a qual de fato não encontrou; em compensação ao longo da caminhada meio longa até o depósito encontrado parcialmente esvaziado, o menino arquitetara um plano que envolvia trazer algumas das gaiolas que sobraram por lá para o apartamento. Na cabeça dele, a afronta iria para além de expulsar do quarto os presentes com que o Cícero pretendera mimá-lo. Se ele desrespeitava a mãe, o filho teria todo o direito de vingá-la e assim recuperar a magnitude da extensão de seus domínios.
Olhar através do espelho redondo e de estimação a versão simetricamente oposta do mobiliário restaurado ao lugar originais, ver todas as coisas nas posições devidas aumentou a intenção de levar um plano que requereria descida à portaria de novo a cabo. Ou seja, embora o padrasto ainda estivesse no apartamento, denunciado pela luz sob a fresta da porta, Justiniano precisou dar um jeito de descer e buscar quantas gaiolas desse para carregar para cima. Saiu de fininho e como para chegar à porta da cozinha saindo do quarto tinha de passar em frente ao quarto do casal, ouviu o Cícero chorar. E divisar palavras desconexas entre os soluços fez o menino ter mais raiva e apressar os passos. No elevador na volta topou com uma senhora que subia com um carrinho de compras. Cara de apreensiva, talvez pelas três gaiolas que o Justiniano conseguiu segurar. Carga é proibido no elevador social desse prédio, talvez seja esse o motivo de apreensão da mulher. Ele, contudo, subiu relaxado por sentir no fundo da garganta um gosto de vingança que havia muito não provava. Chegado o seu andar, recusou responder uma pergunta da mulher atarefada com sacolas plásticas.
Ao que parece, os corvos, mochos e rouxinóis entenderam bem o que o filho de sua dona pretendia fazer palpite comprovado pelo fato de não terem grulhado ao entrar no apartamento, ficaram quietinhos nas suas gaiolas pousadas sobre a mesa de centro da sala assistindo ao Justiniano fechar todas as janelas tentando fazer o mínimo barulho possível. Ao que parece também, apreciaram e muito a liberdade precoce. Piaram apartamento afora atrás de abrigo; planando sobre os móveis a merda branca indo manchar os sofás ou formando montículos sobre o carpete. O garoto fizera questão de deixar as luzes apagadas, para que os freis-vicentes, reloginhos e pica-paus libertados procurassem justo a luz que escorria sob a fresta do banheiro, ainda fechado. Antes de sair, Justiniano rasgou um pacote de cereal para os passarinhos terem o que comer e certificou-se de que pelo menos um deles estivesse empoleirando na maçaneta da porta atrás da qual se escondia o segundo marido da sua mãe.
Fechou a porta, trancou por fora com cuidado para que os pardais, pombos e cotovias não escapassem e fez questão de levar consigo qualquer chave reserva. Desceu pelas escadas, na ponta dos pés evitando ruídos. Embora almejasse a ser discreto ainda teve tempo de flagrar o vão da escada percutindo os sons do andar que acabara de deixar. O menino impressionou-se também ao achar que ouvira os pássaros em meio à algaravia de baques na madeira, vidro quebrando e os gritos de Cícero ao surtar. Bem nítido tudo de que o menino quis escapar logo, pois estava prestes a voltar a seu apartamento, o antigo, onde esperava encontrar sua mãe: debruçada ao parapeito da janela, fitando o horizonte e de costas para as portas abertas das gaiolas.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Do palpável convenientemente interino.


O velho não acordou no dia em que não era pra não acordar. Aos olhos áridos desacordados de coruja só foi possível intuir o contorno das coisas no quarto por meio de relances que driblassem o filtro das pálpebras. Aqui um fim de pá de ventilador, ali uma insinuação de gaveta do armário, atrás da porta passos indos e vindos, cujas pausas funcionavam como metrônomo da paciência do velho expirando, no ritmo do peito menos arfante a cada pássaro de oxigênio de que fica desobrigado. No máximo sentiu um formigamento na ponta dos dedos ao dar-se conta de que não podia movê-los. Mas ao dar-se conta de que não podia qualquer outra parte do corpo expirou um pássaro pesaroso, mais almejado que acontecido. Isso é um corriqueiro que tentara na juventude dissipar com concentração, tumor repentino transtorna a quietude da fauna interior. Ao som do rangido de alguma porta do apartamento abaixo do seu, recapitula vezes em que despertado não conseguia se mover, a letargia das serpentes dos músculos em abocanhar a hibernação dos ossos; um inverno ad hoc cujo fim uma força aleatória designa predispunha os animais a ser menos colaborativos. Um médico amigo da época de amanuense de alguma repartição de algum órgão de alguma secretaria ligada à saúde aduzira vagamente algo de sabe-se lá que hormônio imobilizador das marés de contração voluntária; não adiantou. Sua menstruação, uma vez por mês a cama lhe constringia os movimentos com tal força que mesmo depois que passava sentia vergonha de contar à mulher o ocorrido, como se os cardumes imersos nas veias esquecessem de propósito a clausura imposta, e de volta à rotina nem vagamente aludissem ao evento: disseminada, pela falta de movimentos, a discórdia, não cogitavam ajudar o macaco vigilante do sistema límbico. Tanto é que a vergonha vinha difusa vedando ao velho discernir a fronteira entre o que a causa desta vergonha teria de palpável e o que de imaginado, induzido pelo sono. Tanto é que, se contasse à mulher, o saci cavalgando-lhe a língua poria palavras outras em curso, trabalharia árduo pra culpar o sono pela irresponsabilidade de contornar sombras como bem lhe aprouve. Conjecturando a rotina matinal que se via impedido de cumprir – ao que parece, naquele momento, a fome do coiote se satisfazia com acreditar ter comido, possivelmente persuadida a silenciar o fato de estar numa coleira -, o velho chega a resolver contar tudo de uma vez, embora sinta algo se debater, urrar dentro de si. Agrilhoadas, as entranhas definhavam ocultas atrás da imagem conservadora de velho dormindo. Desta vez o saci não precisaria desdobrar esforços, ela estava em uma excursão com amigas, balneário termal bem localizado com atividades especialmente desenvolvidas para a melhor idade, que a aposentadoria do marido, o qual não reveria, ainda estava pagando: ao entrar no apartamento, antes do sorriso de canto de boca, triunfante pela ordem impecável dos objetos, tal e qual deixara, o cheiro a repeliu. Tampando o nariz fez-se surda ao suspiro final do animal restante dos de dentro do velho, náufrago da carnificina interna incendiada insidiosamente pela preguiça geral; a mandíbula prevaleceu sobre os restos mortais silenciados, um latido provavelmente endereçado à lua que a mulher acabava de incandescer na sala. Longe de comovida, às portas do vômito, aproveitou a mala feita e fechou a porta atrás da pressa, sem tempo para perceber as flores brotadas das pústulas do corpo inerte esgueirando-se para a sala por debaixo da porta do quarto, ramificando para empoleirar na maçaneta.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

99

A porta giratória, cuspidora de gente tanto na calçada quanto no saguão, é uma evidência enganosa, superfluamente óbvia, do padrão do hotel e da condição econômica dos hóspedes. Nem reluzente nem emperrando, seu estado de conservação sim pode ser metonímia do hotel cujas entranhas protege da ameaça da rua, embora a mera presença deste tipo de relíquia mostre apenas que dono do hotel coadunou a extravagância do empreiteiro que desentranhou a porta, já na época seminova, encostada a um canto da loja de material de demolição onde costumava comprar material. Noves fora, a porta dá contornos de pseudoluxo inócuo: o requinte não diferencia de outros hotéis do mesmo padrão localizados na mesma rua, nem atrai mais clientes.

E foi justo por esse adereço, cuja anacronia é lustrada todas as quintas feiras com zelo por um funcionário especialmente destacado para isso, não ser um chamariz do hotel que a gerência não o mencionou na carta enviada ao Jonas pedindo que viesse recolher os pertences que a sua parenta Frida largara atulhando um quarto, após uma morte mal-explicada. A carta dar o nome do hotel e o número da rua - irregularmente numerada, diga-se de passagem – atrapalhou um Jonas recém chegado à cidade e se perguntando como o haviam descoberto a encontrar o leito da sua parenta. Com a confusão chegando às raias do terror diante da disposição simétrica da cidade de ruas sem nome, o menino sofreu na mão de taxistas de má-fé, tão perdidos quanto ele.
O despreparo aguçado pelo desconhecimento quase total acerca da existência da Frida. Passar pela porta giratória e sentir ensurdecido o murmúrio da rua, longe de confortar, joga ao garoto uma hesitação corriqueira que a falecida mãe, a parenta mais próxima da outra morta, sempre julgara incompreensível e instintiva. Aproveitando não ter sido reconhecido por ninguém no saguão, lançando mão de gestos fortuitos para camuflar-se ainda mais até pousar num esconderijo guarnecido por almofadas volumosas de um sofá envelhecido, Jonas falha em catalogar reminiscências: só o nome prevalece na massa e mesmo assim mal e porcamente sugerido pela carta, sustentado por um comentário que ele supõe ter ouvido da mãe sobre as manias dessa Frida.
Que no final nem mesmo ela sabia por que se estabelecera ali. Presenciou inúmeras trocas de gerências e de proprietários: o último dos quais implantou um sistema disciplinar rígido, de acordo com as diretrizes do governo para a revitalização de uma área famosa por suas putas e variedade de drogas a venda. Uma contenda quase imperceptível tomou forma, acuado o proprietário relutava em despejar a hóspede que havia trinta anos pagava um adicional à diária para evitar incômodos, mas queria obedecer ao plano de urbanização. Não que ela criasse caso, o problema podia ser resumido a as regras terem sido determinadas em volta e em função da estadia prolongada de Frida.
Era comum o passeio nua pelo terceiro andar às sextas. E recolher vira-latas que abrigava num cercado nos fundos da cozinha. As queixas encontravam sempre ruas sem saída, Frida pagava mais. Raramente trazia alguém ou saía do quarto, chegou a um momento em que inclusive as camareiras pulavam o quarto dela na arrumação. Foi ficando, imperturbada. Sem altivez, a impassividade com que tratou eventuais recepcionistas novos gerou frieza, não inimigos.
O recepcionista contratado recentemente creu notar mudança na rotina rígida: em geral, Frida deixava o quarto a cada três dias para voltar duas horas depois com sacolas plásticas com cujo conteúdo abastecia o frigobar capenga. Ele percebeu mais de uma vez ruídos grasnidos vindo do andar de que ela tinha praticamente se apossado. Imputou à falta de sono os movimentos que passou a intuir vindos de dentro das sacolas. Relevou quando ela deixou de sair do quarto: ela pagava mais é um mantra repetido pelo gerente entre levar a cabo seu tique de morder o anular direito e apertar a mão de um recém-reconhecido Jonas.
Pede ao recepcionista um molho de chaves guardado num compartimento separado, Frida nunca permitira as fechaduras eletrônicas convencidas por cartões magnéticos. Um tapinha desagradável no ombro do Jonas incentiva a também subir as escadas. Completamente mudo, alvo de um medo incipiente, não tendo decidido mas forçado a acatar as razões do gerente gordo tipicamente simpático, Jonas desistiu de ouvir e não reage aos conselhos sobre como ser bem sucedido na terceira maior cidade do país. Ainda no lance da escada a dupla insólita ouve uma algazarra em um dos apartamentos a qual cessa, atingido o corredor. O gerente finca o dente no dedo trêmulo ao enfiar a chave na fechadura; o corpo não foi removido ainda, será tarefa do Jonas reconhecê-lo para encaminhá-lo a autópsia. A luz do sol vinda através da vidraça do janelão aberto do cômodo mitiga a atroz ordem planejada.

Descrição pericial:
  • 99 pássaros diversos empoleirados em móveis, todos mastigando.
  • 1 agenda aberta jogada no chão.
  • 1 esqueleto conservado sentado em uma poltrona de couro.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sábado às 3h30, sem despedida.


Cheguei às onze e o Thiago não estava.
Liguei para ele pedindo para que me acordasse ao chegar.
Programo o alarme para caso o Thiago não chegue me obrigar a ir a pé.
Fui acordado por uma ligação da minha mãe.
O Thiago ainda não chegara.
Volto a dormir.
Resolvo ligar para minha mãe ir me buscar.
Ao sair percebo uma fresta de luz sob a luz do banheiro e som de chuveiro funcionando.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Dentro.

Y viceversa.
Rodrigo Fresán

Não que eu seja assim impressionável. Embora persistisse a impressão de estar dentro da piada do filme, ou seja, uma cabeça de cavalo implantada entre os lençóis estaria espionando, rindo de mim com todos os dentes. Só faltava descobrir em que lugar da imensidão do colchão se esconderia. Bem que eu insisti para a minha ex-mulher levar a cama na mudança, eu insisti. O problema é, ela recusou levar qualquer coisa que não fosse sua valise de cosméticos – motivo da separação, aliás - e o trambolho restou aqui: grande demais para um corpo que cada vez vem precisando de menos espaço. Desde que ela partiu, ouvi cada vez mais barulhos vindos dos cantos da casa onde guardo trabalhos que esqueceram por aqui, de propósito ou não. Rebuliço de balidos, relinchos nos corredores, um crocitar recorrente vindo de trás de um vaso; minha casa virou um museu e o fato de os passos e ações dos objetos expostos ganharem voz à noite me deixa intranquilo.
Já deveria estar acostumado a estar cercado por um zoológico de impostores, e de fato estou; a questão é que nem mesmo o longo tempo de serviço me preparou para a casa começar a abrigar ruídos surgidos de lugares recônditos. Ruídos muito familiares aos que fizeram aquilo com que trabalho, sou empalhador. O fato de morar numa ilha não ajuda nada na minha profissão, taxidermista como diz a carteirinha profissional. Na verdade atrapalha: seja pela corrosão propiciada pela maresia, seja pela dificuldade que os parcos clientes encontram em chegar aqui. Por isso abri uma representação na cidade, comprei um quiosque para atender quem quisesse conservar o seu bichinho de estimação para todo o sempre. Fiz um acordo com o barqueiro em relação a todo dia trazermos os serviços de barco ao fim da tarde, na alta da maré.
O cavalo foi mesmo o mais difícil, o pouco calado do barco não comportava duas pessoas e mais um animal que pesava o que sete pessoas pesam. Pior, tanto o barqueiro não saberia acomodar o corpo do animal direito e provavelmente o largaria de qualquer jeito na praia à mercê das gaivotas, quanto eu não sabia manobrar o barco para desviar das pedras pontiagudas que cercam a ilha em que me isolei. Resolvemos esse problema de lógica na calada da noite; serramos a cabeça do cavalo fora e a deixamos em um freezer para não estragar. Tudo muito discretamente; não sou de falhar serviço e também não queria que o seu Abílio visse o querido animalzinho decapitado desse jeito. Chegando à ilha, depositei o corpo no freezer próprio; voltamos e eu pude recuperar a cabeça, que também congelei em casa. Posicionei a cabeça do cavalo de forma a não ter que encarar seus olhos embaçados ao abrir o freezer. Quando empalhasse, eu costuraria a cabeça ao resto e cobriria a sutura com pele artificial, ninguém daria pela artimanha.
E ninguém deu mesmo, nunca vieram buscar. Cogitei avisar ao Seu Abílio que viesse com um barco robusto recolher o cavalo: faltou tempo hábil, ele morreu antes que eu concluísse o trabalho. Nenhum parente se interessou pela herança ou quis pagar pelo meu serviço. Pelo menos não me encomendaram empalhar o velho, em memória do qual o cavalo foi ficando. Era comum isso; por condolência com o trabalho feito, sempre sobrava por aqui alguma ovelha ou periquito a pagar, que eu, dependendo, jogava ao mar ou mantinha em casa.
A minha casa começou a impregnar-se de barulhos de bicho há umas duas semanas. No começo, discretos, não diferiam muito dos grilos que sempre cercaram a casa e dos cupins que costumam roê-la por dentro. Imperceptíveis, pareciam com a impressão de aparelho eletrônico ligado em outro cômodo, uma estática de fundo: subliminar. E mesmo quando a intensidade aumentou a níveis alarmantes, sempre restava a desconfiança esperançosa de ser um relance, ou um engano. Um coaxo aqui, um pio acolá. Sempre breves o suficiente para demarcar um rastro na audição, nunca o som em si. Um zumbido ali. E eu que nunca tive dificuldades em dormir, comecei a trabalhar madrugada adentro, queria cansar bastante e dormir direito depois. Porém, quando não ir à cidade durante o dia provocou uma queda drástica no número de pedidos, recuei ao turno do dia. E aos tormentos noturnos: interrogações dentro da cabeça sobre ter ouvido ou não um mugido vindo daquele chifre esquecido encima da estante.
Tecidos moles são prontamente retirados, logo no início do processo de embalsamamento. Os olhos, por exemplo, são substituídos por próteses de vidro. Técnicas modernas conservam as vísceras injetando fluído plástico no sistema circulatório do que se quer empalhar. As técnicas antiquadas, das quais sou simpatizante por falta de recursos, lançam mão da palha para preencher o espaço deixado pelos órgãos ao ser retirados. Pessoalmente uso fibra de coco para isto por ser o material mais a mão.
Deitado na cama em que cabem oito de mim, lado a lado, gastava boa parte da noites da primeira semana classificando o que eu ouvia. Se cochilava por alguns instantes, logo o gemido de dobradiça enferrujada me arrancava do sono para me largar em um sonho; acordado ou dormindo comecei a detectar seus passos em rotas sonoras pelo assoalho da casa. Foi aí que eu aprendi: um casco fendido pisar no chão de madeira faz um som diferente de um pato chapinhando sob os móveis que faz um som diferente de uma rã esparramar água, atingindo o fundo da pia de alumínio. Quando vi a sombra de uma mariposa translúcida, com o respectivo orifício causado por alfinete na barriga, traspassada pela luz da lua voejar basculante do banheiro adentro, resolvi que o exílio era a melhor opção. Levantei da cama, acendi a lâmpada e a casa toda se fez em farelos de silêncio, até os cupins pararam para escutar. A solução pareceu óbvia, então; conforme ia pelos corredores acendendo cada lâmpada, acabava por verificar que os animais eram apenas estátuas, portanto restritas ao lugar em que eu as repousasse.
Por via das dúvidas desisti do quarto. Já que tampouco podia trabalhar, meu refúgio foi a televisão. Subi no telhado, mexi na antena para fazê-la melhorar dos chuviscos. Confinado aos canais abertos, fiz esforço para me entreter com reprises de reprises de filmes há muito exibidos. Um ou outro pornô salvou algumas noites; ainda incomodava a impressão de movimentos de silhuetas atrás do sofá, no limite periférico da visão, embora eu me negasse a perceber os ruídos crescendo. Sono eu tinha e tenho muito, habitualmente dormitava ao longo de um documentário sobre animais e despertava em um filme de luta, qualquer combinação assim. As luzes permanentemente acesas não facilitavam. A suspeita recorrente de estar inventando não facilitava. Acordava bem cansado, todo torto por causa do sofá, dor nas juntas e no pescoço.
Voltar à cama estava fora de cogitação, vá lá saber quais são os planos desses bichos ou o que eu descobriria se abrisse a porta do quarto. Aqueles barulhos praticamente me expulsavam de casa; um pouco mais a cada noite por mais que eu pretendesse submergir nos programas da TV. Era crítico, daqui a pouco eu teria que fazer uma cabana de folhas de palmeira na praia. Nem jogar um deles no lixo ajudou, durante a noite os ruídos eram igualmente intensos – algaravia de convenção – e ao dia seguinte a pomba retornara ao poleiro de onde eu a desalojara.
Esta noite era para ser especial, não sei que milagre aconteceu para anunciarem uma exibição da maratona d’O Poderoso Chefão. Eu nunca vira o filme, por mais que morresse de vontade. Inclusive dormi durante o dia, no sofá também, para ter a disposição de encarar as quase oito horas de duração total da trilogia. Abri um refrigerante e peguei amendoins. Em vão tudo, só agüentei até a cena do casamento antes que o sono se apoderasse das pálpebras; fui domado por um estupor que oscilava entre vigília e sono. Baita filme chato, fico até agora indagando se a cena cabeça de cavalo deixada na cama para, por meio de um senso de humor característico, assustar era cena do filme ou do resquício do sonho.
Sei que não agüentei mesmo. Ignorei ter derrubado a mistura de refrigerante e sal dos amendoins encima do controle remoto e cambaleei rumo à cama que vinha evitando há semanas. Nisso de trôpego de sono abandonar o filme nem atentei para os ganidos, cacarejos, miados que - suponho - pululavam ao meu redor. No meu sonâmbulo trajeto insone preocupava mais o som do abajur que demoli ao apoiar a mão em uma mesinha espatifando no chão. Rebotalho da partida da ex-esposa; ela decorara a casa para não querê-la à hora da divisão dos bens? pois bem, agora meu inconsciente suplicava por essa purificação. Mentira, sem regozijo pela destruição da mobília, que é provável que os bichos comam quando eu não esteja mais aqui; a bem da verdade, eu só queria dormir. Por isso o descaso ao pisar nos cacos de porcelana. É bom fazer o máximo barulho possível para espantá-los.
Girei a maçaneta com a mão esquerda, enquanto preparava a direita. Hesitante porém negligente, abri a fresta entre a porta e a moldura com o tamanho exato para caber a minha mão; percorri urgente a parede com os dedos até localizar o interruptor. Vislumbrei num relance após acender a lâmpada, o quarto ressonava semelhante a como eu o deixara. A diferença se resumia à janela fechada, a qual escancarei para arejar escuridão. O meu medo era o percurso entre o interruptor e a cama por ter de ser cumprido com a luz apagada. Apaguei, um raio da luz da lua incidindo diretamente sobre a cama deu a impressão de que algo avolumava sob o lençol; fechei os olhos de vez, pois não quis descobrir. Deitei, restauraram os estrondos mais alto que nunca. Sempre de olhos fechados, era como se de rabo de olho eu presenciasse movimentos do vulto à esquerda. O quarto todo tornado um teatro de sombras.
Não que eu seja assim impressionável. Mas a impressão de que a cabeça sangrenta do cavalo rir da minha cara em algum lugar sob estes lençóis dificulta o sono fica diluída no sono acumulado. Por sorte ou por azar é esse mesmo sono acumulado que me faz duvidar entre ser sono, sonho ou realidade o fato de que começam a eviscerar meu tórax. Já o farfalhar da palha ao ser socada dentro de uma cavidade corporal é uma sensação mais plausível e próxima a mim, provavelmente consciente.