domingo, 28 de novembro de 2010

O anverso do facho com origem na luminária entrecortado por um vulto brusco que, ao passar voando, é refletido pelo espelho.

agrega el procónsul, "es justo que
procure ofrecerte lo que más te agrada". 
Julio Cortázar

Magali colecionar pássaros a fez perder dois maridos. O nome do primeiro deles é Justino; dedicado na medida do possível, que durou com ela dezoito anos - estáveis, diga-se. O outro marido ficou os dois meses que lhe foram permitidos pelo seu enteado Justiniano, o qual deliberava e decidia na grande maioria dos assuntos desenrolados sob o teto que compartilhava com sua mãe, no mínimo naqueles que diziam respeito a ele. Haja vista ser a preocupação de Magali, ao agradá-lo concordando com quaisquer dos seus caprichos, não aguçar os traumas que ela julga que o primeiro casamento deixou para o menino; só falta dizer que a única proibição em casa que partira dela fora a de não soltar os pássaros. Ele os odeia com espasmos de afeto de tempos em tempos mas respeita a imposição da mãe. Se não respeitasse teria se juntado à causa que seu pai iniciara uns bons meses antes da separação. O problema do primeiro marido não era com os bichinhos de estimação e sim com a quantidade de dinheiro que Magali fazia escorrer para mantê-los. Ironicamente a redução que ela promoveu dos custos teve pouco efeito, ou melhor, pouco tempo para ter efeito.
O primeiro marido desenvolveu hiperacusia tardiamente; o som da garra de um pintassilgo afivelar-se ao poleiro – e este não é o ruído mais bombástico que estes seres enjaulados são capazes de emitir - tornou-se intolerável a ponto de tirar o sono ao Justino. Valeu a máxima implícita do primeiro casamento de Magali: os pássaros, comprados, acima das decisões. O que quer dizer que aliando esta desculpa ao desgaste do casamento, obteve-se uma separação perfeitamente aceitável. O próprio ex-marido confessou seu alívio, pretextou um aposento com muita cortina e almofada, talvez preparado pela mãe, e deixou a casa sem mais. A partir daí teve início o império de Justiniano. Um menino que até então os pais achavam não ser muito propenso à fala ganhou uma voz que foi encorpando à medida que os pretendentes a marido da sua mãe foram demonstrando ser filhos da puta. A cada namorado frustrado, Magali culpar-se por ser ausente só resultava em mais espaço para o filho. Isso até o arrebatamento provocado pela paixão pelo homem que viria a ser o segundo marido.
A relativa perda de poderio acabou resultando bem para o menino, que de certa forma acatou a autoridade que Cícero prometia. Sua resistência fora grande a princípio, quando os namorados decidiram mudar para a casa dele após o casamento. Justiniano se opunha, argumentava falando de restrição de liberdade; Magali esbarrou em um impedimento, aquele com quem cujo casamento estava marcado tinha um pânico de pássaros com origem na infância. O curso de noivos ocorreu concomitante a acompanhamento psicológico: o consenso alcançado previa a locação de um abrigo seguro para as gaiolas de colibris, pintarroxos e sabiás que Magali chamava de tesouro e a decoração de um quarto do apartamento do recém-marido com motivos da banda favorita do garoto. Vale dizer que Justiniano teve pouca influência na separação da Magali e do Cícero e muita no motivo desta saída embora não tenha feito intencionalmente, o menino se afeiçoara desde os primeiros livros que aquele professor de história bigodudo que saía para a varanda para fumar trouxe.
A coisa toda começou com um espelho redondo em que Justiniano colara adesivos de bandas, desenhos e fotos que recortou de revistas de mulher pelada. O padrasto concordar em trazê-lo para o quarto novo tirando as fotos de mulheres – Cícero sendo conservadoramente estrito – deu a Justiniano duas sensações, às quais aquiesceu: a primeira delas é a de que o novo marido da mãe embora o quisesse mais comportado gostava dele e a segunda das impressões, conseqüência da primeira, foi a de sentir-se acolhido. A primeira teve por resultado a retirada de todos os adornos anteriormente grudados ao espelho, o Justiniano só manteve no espelho uma foto antiqüíssima de sua bisavó. A segunda sensação provocou um pedido, delicado porém firme; e lá foi o Cícero tirar quase todo o mobiliário do quarto do enteado para depois subir com ele escadas acima, instalá-lo e ainda prontifica-se a mudar móveis de lugar. Tudo para estreitar uma relação que começara artificial. Em suma, o Cícero fez as vontades do menino.
A coisa toda continuou com a proibição às andorinhas, araras e albatrozes ter por resultado ocasionar longas ausências da Magali, durante as quais o ciúme de Cícero fermentava, não que haja havido acusações formais. Subrepticiamente o marido acreditou ser e agiu em direção a ser possível formar com o Justiniano uma aliança contra os desvarios da mulher amante dos pássaros. Iludido primeiro conversou com a esposa, que continuou visitando os tais pássaros e voltando a altas horas da madrugada. A seguir, ainda mais possessivo, tentou convencê-la a vendê-los; e por último achou que podia impedi-la de sair de casa ou, no mínimo, fixar horários. Crendo firme em ter caído nas graças de Justiniano, não poupou palavras e gestos autoritários cuja fonte era uma desconfiança não completamente descabida. Frustrado em relação a alguém de quem estava aprendendo a gostar, Justiniano passou cultivar um ódio ao qual dava vazão por meio de distanciamento. Explodiu no dia em que o padrasto perdeu o controle e tentou acorrentar Magali à cama enquanto ela dormia. O filho acordou com os gritos estridentes e no que foi resgatar a mãe ela já não estava. No entanto, uma luz fina sob a fresta da porta denunciava Cícero, trancado no banheiro.
A tentativa de sublevação por parte do menino foi sufocada rápido; o feixe de raios coloridos, luz branca passada por prisma copiada da capa do disco mais famoso da banda que o Justiniano gosta; a luminária de leitura; a gravura do planeta Terra decalcada na parede oposta: tudo o que o menino tinha arrancado do quarto e jogado na lixeira do prédio em revolta resultara intacto. Difícil para ele, voltar de uma ida infrutífera ao depósito onde a mãe guardava as andorinhas, bem-te-vis e guaxos e perceber os objetos reluzentes e de volta aos seus lugares. Infrutífera em termos, ao sair do apartamento furioso com o padrasto, Justiniano tinha ido procurar a mãe, a qual de fato não encontrou; em compensação ao longo da caminhada meio longa até o depósito encontrado parcialmente esvaziado, o menino arquitetara um plano que envolvia trazer algumas das gaiolas que sobraram por lá para o apartamento. Na cabeça dele, a afronta iria para além de expulsar do quarto os presentes com que o Cícero pretendera mimá-lo. Se ele desrespeitava a mãe, o filho teria todo o direito de vingá-la e assim recuperar a magnitude da extensão de seus domínios.
Olhar através do espelho redondo e de estimação a versão simetricamente oposta do mobiliário restaurado ao lugar originais, ver todas as coisas nas posições devidas aumentou a intenção de levar um plano que requereria descida à portaria de novo a cabo. Ou seja, embora o padrasto ainda estivesse no apartamento, denunciado pela luz sob a fresta da porta, Justiniano precisou dar um jeito de descer e buscar quantas gaiolas desse para carregar para cima. Saiu de fininho e como para chegar à porta da cozinha saindo do quarto tinha de passar em frente ao quarto do casal, ouviu o Cícero chorar. E divisar palavras desconexas entre os soluços fez o menino ter mais raiva e apressar os passos. No elevador na volta topou com uma senhora que subia com um carrinho de compras. Cara de apreensiva, talvez pelas três gaiolas que o Justiniano conseguiu segurar. Carga é proibido no elevador social desse prédio, talvez seja esse o motivo de apreensão da mulher. Ele, contudo, subiu relaxado por sentir no fundo da garganta um gosto de vingança que havia muito não provava. Chegado o seu andar, recusou responder uma pergunta da mulher atarefada com sacolas plásticas.
Ao que parece, os corvos, mochos e rouxinóis entenderam bem o que o filho de sua dona pretendia fazer palpite comprovado pelo fato de não terem grulhado ao entrar no apartamento, ficaram quietinhos nas suas gaiolas pousadas sobre a mesa de centro da sala assistindo ao Justiniano fechar todas as janelas tentando fazer o mínimo barulho possível. Ao que parece também, apreciaram e muito a liberdade precoce. Piaram apartamento afora atrás de abrigo; planando sobre os móveis a merda branca indo manchar os sofás ou formando montículos sobre o carpete. O garoto fizera questão de deixar as luzes apagadas, para que os freis-vicentes, reloginhos e pica-paus libertados procurassem justo a luz que escorria sob a fresta do banheiro, ainda fechado. Antes de sair, Justiniano rasgou um pacote de cereal para os passarinhos terem o que comer e certificou-se de que pelo menos um deles estivesse empoleirando na maçaneta da porta atrás da qual se escondia o segundo marido da sua mãe.
Fechou a porta, trancou por fora com cuidado para que os pardais, pombos e cotovias não escapassem e fez questão de levar consigo qualquer chave reserva. Desceu pelas escadas, na ponta dos pés evitando ruídos. Embora almejasse a ser discreto ainda teve tempo de flagrar o vão da escada percutindo os sons do andar que acabara de deixar. O menino impressionou-se também ao achar que ouvira os pássaros em meio à algaravia de baques na madeira, vidro quebrando e os gritos de Cícero ao surtar. Bem nítido tudo de que o menino quis escapar logo, pois estava prestes a voltar a seu apartamento, o antigo, onde esperava encontrar sua mãe: debruçada ao parapeito da janela, fitando o horizonte e de costas para as portas abertas das gaiolas.

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