sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Dois testemunhas de jeová na parada de ônibus, hieráticos. Perto demais do banco de concreto para que não seja cortesia não ocuparem o assento que vaga de vez em quando e é disputado. Poderiam sentar. Dois inconvenientes: é um banco banguela, daqueles de metal, só sobrou lugar para um e seria indelicado de Helder Whaite não deixar Orson Bilford sentar, e vice-versa; oferecer colo, nem pensar. De mais a mais, é possível que esperem reconhecimentos pelos bons modos. Tubarões, espreitam qualquer velhinha com sacolas levantar um rosto com um pingo de gratidão pra poderem puxar assunto. Difícil dizer se o ônibus furou ou se estão fazendo ponto. As mãos paralelas ao torso, fechando atrás das costas segurando uma bíblia, retesam mais o engomado. O crachá reluz, alinhado com a solicitude ansiosa, com o sorriso afiado. Um celular em um dos bolsos frontais toca, o infarte é quase nítido, simultâneo. Uma gagueira contamina até o que está só pescoçando a conversa. E que balança a cabeça também, várias vezes, imitando o jargão militar organizacional com sotaque do meio-oeste de algum lugar. No geral esses caras respondem até frentista com amém. Começar a chover apresenta um dilema, chegaram mais três deles, estão se reproduzindo, e paira a questão sobre imigrar para debaixo da marquise ou deixar espaço.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

troço


No máximo a inquietude das mãos, ora tamborilando os braços da cadeira numa repetição chata, ora se forçando para aquietar no regaço quadriculado por cima das pernas. É porque o balanço não deixa ver, mas o esfarrapado da beirada da manta meio que revela. Grumos de pele fosca quase se desgrudando das pálpebras baixas; só peito, sobe e desce, dá indicação visível de que ele vive. Só ele, no mais, nada faz suspeitar da tremedeira, tão contínua que a esta altura do campeonato ninguém sabe mais se é crônica ou para chamar a atenção. Os barulhos da respiração, os fôlegos curtos que ele puxa de vez em quando, ficam abafados pelo ventilador; pode até ser que de fato ele não escute minha impaciência chamá-lo, ou só finja que não me ouviu perguntar da cozinha se a Danuza já tinha dado o remédio dele; quando na porta da cozinha, pano de prato enxugando uma das mãos, finge que não me percebeu chegar, como se a janela passasse algo imperdível. Eu lá plantada respiro fundo três vezes, parece que é de sacanagem, mas eu não deixo ele perceber que me afeta, não que ele fosse perceber, e me viro. Ao terminar de picar as frutas e me certificar de ligar o liquidificador no mais barulhento, paro um segundo e noto que, por mais que eu queira, minhas mãos não tremem, quem continua merecendo a atenção é ele. Atravesso a sala tentando não deixar escorregar o copo que levo em cada mão, ele atirou a manta de qualquer jeito e coça por dentro do short, bem na altura da ferida. Apesar do incômodo e do empenho, a cabeça dele não moveu um milímetro, um vento entra acertando, provavelmente arrepia os cabelinhos ralos do peito dele, provavelmente provocará um nariz gotejando, um catarro que eu terei de limpar, e a expressão é a mesma desassombrada de antes, de espectador, estacionada entre o repetitivo e o alheado. Tendo parado de coçar, apalpa um lugar a meados da coxa, muito de leve e em braille, sem olhar, meio hesitante demais por causa da ferida. Uma mosca aterrissa-lhe a barba por fazer e só arreda por causa do estrépito que eu faço de propósito ao pousar os copos na mesa de canto. Ele reage tarde, continua coçando o rosto. Desenterro o controle remoto das almofadas e mudo de canal para cancelar o chiado cinza. O vai e vem da cadeira na minha visão periférica incomoda, por isso paro segurando por uma das hastes do espaldar; a freada brusca provocou certas reações: um resmungo para ser exata. Um resmungo mal direcionado, mais mugido do que para mim. O tique-taque de saltos altos zanzando no andar de cima é o de sempre, e nem por isso ele deixou de procurar no teto um sentido para mais esse vai e vem; num movimento satélite do pescoço, ajudado pela cadeira de balanço, a perspectiva ao imaginar a trajetória do par de sapatos muda a cada ciclo: arregala os olhos, a pele do pescoço deixada a mostra com isso tem mais arranhões, uns que eu não vi na noite anterior. Entre dois goles de suco resolvo contrariar o médico, agasalhar a mão mais perto de mim entre as minhas fez ela se crispar num espasmo claustrofóbico, um arranque assustado, lembrete das orientações do doutor. Ele acabou derrubando o copo da mesa; os cacos de vidro e a vitamina contaminaram o tapete e eu tive que enrolar e jogá-lo dentro do tanque. Quando volto à sala, ele incrementou o ritmo da cadeira de balanço, os pés se aproximando perigosamente de um assoalho que deve esconder ainda uns estilhaços. Calcei-lhe as pantufas tentando tocar o mínimo nele, que, tendo aproveitado para recuperar a postura, o rosto vago, as mãos peregrinas e a ferida na perna, não reage.