domingo, 19 de dezembro de 2010

O cão no telhado.

 Era mi modo de hablar
en los momentos conflictivos.
Salía por la tangente o emprendía uma enloquecida
huida hacia adelante.
Enrique Vila-Matas

Erro. Na falta de um radiorrelógio, a sina a cumprir era sempre a de singrar os corredores de pé-direito alto no escuro rezando para o dedão não topar com a esquina de um móvel ou rodapé e para os tacos velhos do piso não denunciarem a trajetória, e ir tentar a sorte nas horas do microondas. A luz do visor deixava evidentes na cozinha contornos até então inéditos, exalava um halo espectralmente azul em que eu gostava de me banhar sempre que possível. Sempre que eu não pressentisse de ouvido a presença da irmã já do corredor. E mesmo com a área desimpedida era pouco o tempo em que era seguro ficar. Levando em conta que a severidade dos castigos por fazê-lo catalisa o prazer ao infringir regras, era justamente a vulnerabilidade da condição o que me levantava da cama a meados da noite. Embora eu possa convencer com o argumento de acordar por motivos arbitrários, até falando por este viés parece ser difícil acreditar em que uma inquietude da situação em si não estimulasse. A cozinha era terreno movediço que só nos era franqueado durante os cinqüenta minutos semanais de aula de cuidados domésticos, no resto do tempo, assim como acontecia com os outros cômodos, não tínhamos o que fazer por lá. Por isso o deleite e por isso a sede como pretexto motivador: mesmo que eu, camuflado no silêncio, não tivesse coragem de puxar um banquinho para alcançar um copo no armário. E até a coragem adiantaria pouco, o filtro ficava lacrado fora dos horários de beber água.

Dúvida. A melhor parte do percurso era aproveitar a calma triunfante do caminho de volta para, joelho na almofada, afastar minuciosamente em silêncio a cortina que cobria o grande vidro que fazia as vezes de parede entre a sala de estar e o jardim. O rangido dos trilhos me levou mais de uma vez à beira do enfarte, a vista compensava e sem falar que a maciez do sofá era um conforto proibido ao longo da semana. A luminosidade do poste na calçada que transcorria rente ao portão cruzava o jardim antes de varar a vidraça e transformar a cortina numa lona branca semelhante em tudo ao telão em que assistíamos – todos os dias, religiosamente - a programas educativos e missas. O que no começo era a última atração e a mais prazerosa deste esboço de televisão virou um jogo quando descobri que esta travessia noturna e esta contemplação não eram exclusividade minha. Por variados que fossem os horários e os motivos dos outros ao vagar pela casa noite adentro, ninguém voltávamos ao quarto sem enumerar as pessoas que por um intervalo quase tão curto quanto um espasmo passassem na calçada em frente ao portão. O adiantado da hora fazia destas aparições abruptas um evento tão ansiado quanto maior fosse o perigo de ser pego assistindo. Um ranking e uma relação inversamente proporcional esclarecem as razões da popularidade deste jogo entre nós, o menino poderia ver mais pessoas passando porém correria um risco maior de ser flagrado pela irmã, caso prolongasse a sessão.

Acerto. Um dia o tráfego aflorou como se tivesse estourado uma represa. O que era raro, encontrões fortuitos nos corredores e cumprimentos com a cabeça trocados em silêncio, tornou-se mais freqüente. Conforme as noites infestadas de passinhos abafados avançavam, um murmúrio ganhava corpo. Eu quase já não saía, o menino que dormia na mesma cama tomou gosto pelos passeios e era preciso ficar para vigiar e fazer volume sob a coberta. Não sei como o padre ou a irmã não acordaram com o barulho destas movimentações, algumas coletivas inclusive. O jogo foi abandonado por desuso: ao ser flagrado, quem liderava o ranking foi movido para um quarto especialmente projetado para desencorajar ousadias, eu mesmo fui afastado. Apesar de me acusarem de mentir pontuação forjando descrições de passantes, o que me condenou foi perguntar se haveria alguém que não fizesse isso. Entraram em vigor ao mesmo tempo uma patrulha intensiva da irmã, aleatoriamente no princípio ou no fim da escada, e longas conversas noite adentro, sussurros cifrados orquestrando um motim protegidos sob lençóis. Dadas as dificuldades impostas ao plano pela escadaria e pela fechadura nova do quarto, concluíram que a saída seria um dos vitrôs que servia para ventilar e iluminar o quarto do alto, de perto da junção da parede com o teto. Foi preciso virar um colchão de lado só para alcançar a alavanca que abria o vitrô. Usaram os outros dois colchões para chegar à abertura estreita, um empilhado em cima do primeiro e o outro servindo de escada para o topo da pilha. Não pensaram em como sairiam do telhado da garagem, a questão imediata era que só um ou dois meninos eram franzinos o suficiente para a largura da abertura e o líder não era um desses. Quebrar o vidro com uma sapatada foi inteligente o bastante; enquanto a irmã se ocupasse em abrir a porta, eles achariam um jeito de pular para a rua. Só não previram que abandonariam um que quebrasse a perna no salto.

Distensão. Achado na manhã seguinte, o padre o aceitou de volta. Sobramos três para ver o regime intensificar os cuidados que a confiança nos efeitos da nossa catequese tinha negligenciado. A comunicação entre mim, o menino cuja perna quebrada diagnosticou-se como intervenção divina para o salvamento da alma e o líder do ranking passou a ser racionada também. Reservaram dois terços do dia para rezarmos e meditarmos, cada um em um cômodo. Sobrou para o fujão um banheiro fora de uso; em busca de redenção, mortificou-se ainda mais que o exigido, revelou os planos e atendeu com diligência dobrada cada instância da irmã, cujo sadismo a comodidade da situação agravou. Me foram feitas muitas perguntas, das quais me eximi mais por ignorância e desinteresse que por brio. A realidade é cara, privado de comida e banho de sol, cogitei inventar, inventei mas me senti incapaz de apresentar fatos, nomes, condições, queixas e destinos: fui contido pelo medo do empenho com que a irmã conduziria as acareações da versão que cada um tinha da história. Obviamente falhei ao tentar falar com o menino, a enfermeira dispensava a ele e a mim um tratamento ainda pior do que o que tínhamos só com a irmã, e o banheiro ficava no térreo. Obviamente interrompi mais de uma oração noturna para imaginar ou de fato distinguir, apenas com o som que o vitrô me punha a disposição, passos na calçada em frente. Competição solitária, embora o menino com quem eu compartilhava andar também devesse atualizar sua pontuação – a janela do quarto dele dá para vista para a calçada -, seria impossível comparar. Confinado a me resignar a conseqüências, considerei o esforço de inventar qualquer causa inútil.

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