terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Retorno anti-horário sob chuva nº5.


Um Josias parou à borda do meio fio – fronteira tornada palpável entre cotidiano e ameaça pelo afluxo abrupto de precaução, sinapse a sinapse –: pendia à faixa de pedestres segurando a vertigem do asfalto lá embaixo com a tenacidade desgarrada da garganta que retém um vômito, ao decidir dar a volta, não atravessar aquela rua. O desdém de um ou outro automóvel escasseado pela manhã de domingo, avaliza o arroubo que, mais do que medo remoto aflorando, é apenas pelo momento em si. Um provável detalhe mal percebido e mal expresso, estopim de uma série de processos cujo ápice seria dissuadir o Josias de que seria mais barato e proveitoso - plano inicial - ir comprar no mercado do outro lado da rua do que se ater à quitanda, rente à calçada que ocupava. Repentinamente obrigado a adaptar trajeto e ponto de chegada, o corpo lhe nega o caminho premeditado e usual; embora tomado de súbito pelo medo, rejeita mesmo o caminho que levaria de volta a casa, isso para entregar-se a um improviso ao qual as pernas assentem conforme executam. Não fraquejam ao passar em frente à fachada da quitanda – a negligência motora ofuscara a fome que as impelira ali, intimamente arrepiadas ao pressentir textura da areia a que rumavam. Padaria, varal, caterva de pombos, putas extemporâneas, caminhão de lixo não perturbaram a obstinação retilineamente vigorosa das pernas, obstinadas em ignorar estorvos próprios do horário: por mais difícil que fosse esquivar da mulher que o abordou. A interpelação e a ordem que se seguiram ao silêncio frio atônito do Josias antes de aturdirem o indispuseram ainda mais contra a figura de gestos afáveis, cabelo liso caindo até a cintura e saia abaixo do joelho, que o constrangia ao convocá-lo pelo nome para uma reunião para a qual o homem com quem a mulher o confundia estaria atrasado. Resolveu relevar, cogitou fuga enquanto buscava recuperar para além do alarde dos sinos o rugido das ondas que o orientava; instantes antes de uma estridência superar os outros barulhos, arrematando o incômodo de um Josias ávido por erradicar o ruído externo. Ao rastrear o vibratório do celular no bolso da camisa e atender uma enchente de perguntas em tom preocupado, inédito para ele e que o chama de amor, sobre a razão de sua demora e sobre sua localização, a calma de Josias para com externalidades provisórias se agrava: apenas negligenciou a pressão dos dedos, continuou dissimulando o passo apressado de quem ainda fugia da mulher que o chamara para a reunião de um grupo com que ele não se lembrava de ter se comprometido, tampouco viraria o rosto em busca do aparelho, pisado na pressa. O posto de gasolina se erige diante dele quase de uma vez, como miragem materializada em que o Josias tropeçaria se não tivesse recuado no tempo exato de evitar um carro que entrava a toda para abastecer, o homem a bordo xingou. Mesmo reputando impostura a tudo à exceção do estilhaço que a maré provoca nas águas, já dentro da loja de conveniência - catatônico diante do caixa: um pacote de batatinhas fritas em uma das mãos, girando uma moeda sobre o balcão com os dedos da outra enquanto esperava totalizarem o valor da compra -, enxerga em um tique de canto de boca da atendente um detalhe tão aterrador quanto pequeno, um que dá vontade de emasculá-lo com socos. O primeiro deles acerta em cheio um olho, o tombo e conseqüente escapada da mulher escoltada pelo balcão prendem o segundo soco do Josias. Um terceiro súbito que esperava na fila previne enérgico a fórmica do balcão de ser socada pelo braço do Josias, frustrado. Independentes de quanto o embotamento do Josias roubassem da nitidez e da convicção do semblante do terceiro cara, o nome que a boca do homem não parava de repetir aos berros e os chacoalhões com que suas mãos laceraram o auto-exílio surtiram o efeito desejado só no começo. A porta automática abriu-se para um Josias meio cambaleante recém-acordado. Mas o frentista, porque distraído, surpreendeu-se incapaz de refrear o roubo da moto deixada para abastecer pelo dono que - se virasse o rosto ao invés de entrar na loja de conveniência - a teria visto deixar o posto e ganhar a rua. O semáforo vermelho do cruzamento apenas condenou condescendente a conversão ilegal. Na contramão, Josias não teria como ler a placa avisando que a pista desembocaria na costa, dali a trezentos quilômetros.

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