sexta-feira, 12 de novembro de 2010

99

A porta giratória, cuspidora de gente tanto na calçada quanto no saguão, é uma evidência enganosa, superfluamente óbvia, do padrão do hotel e da condição econômica dos hóspedes. Nem reluzente nem emperrando, seu estado de conservação sim pode ser metonímia do hotel cujas entranhas protege da ameaça da rua, embora a mera presença deste tipo de relíquia mostre apenas que dono do hotel coadunou a extravagância do empreiteiro que desentranhou a porta, já na época seminova, encostada a um canto da loja de material de demolição onde costumava comprar material. Noves fora, a porta dá contornos de pseudoluxo inócuo: o requinte não diferencia de outros hotéis do mesmo padrão localizados na mesma rua, nem atrai mais clientes.

E foi justo por esse adereço, cuja anacronia é lustrada todas as quintas feiras com zelo por um funcionário especialmente destacado para isso, não ser um chamariz do hotel que a gerência não o mencionou na carta enviada ao Jonas pedindo que viesse recolher os pertences que a sua parenta Frida largara atulhando um quarto, após uma morte mal-explicada. A carta dar o nome do hotel e o número da rua - irregularmente numerada, diga-se de passagem – atrapalhou um Jonas recém chegado à cidade e se perguntando como o haviam descoberto a encontrar o leito da sua parenta. Com a confusão chegando às raias do terror diante da disposição simétrica da cidade de ruas sem nome, o menino sofreu na mão de taxistas de má-fé, tão perdidos quanto ele.
O despreparo aguçado pelo desconhecimento quase total acerca da existência da Frida. Passar pela porta giratória e sentir ensurdecido o murmúrio da rua, longe de confortar, joga ao garoto uma hesitação corriqueira que a falecida mãe, a parenta mais próxima da outra morta, sempre julgara incompreensível e instintiva. Aproveitando não ter sido reconhecido por ninguém no saguão, lançando mão de gestos fortuitos para camuflar-se ainda mais até pousar num esconderijo guarnecido por almofadas volumosas de um sofá envelhecido, Jonas falha em catalogar reminiscências: só o nome prevalece na massa e mesmo assim mal e porcamente sugerido pela carta, sustentado por um comentário que ele supõe ter ouvido da mãe sobre as manias dessa Frida.
Que no final nem mesmo ela sabia por que se estabelecera ali. Presenciou inúmeras trocas de gerências e de proprietários: o último dos quais implantou um sistema disciplinar rígido, de acordo com as diretrizes do governo para a revitalização de uma área famosa por suas putas e variedade de drogas a venda. Uma contenda quase imperceptível tomou forma, acuado o proprietário relutava em despejar a hóspede que havia trinta anos pagava um adicional à diária para evitar incômodos, mas queria obedecer ao plano de urbanização. Não que ela criasse caso, o problema podia ser resumido a as regras terem sido determinadas em volta e em função da estadia prolongada de Frida.
Era comum o passeio nua pelo terceiro andar às sextas. E recolher vira-latas que abrigava num cercado nos fundos da cozinha. As queixas encontravam sempre ruas sem saída, Frida pagava mais. Raramente trazia alguém ou saía do quarto, chegou a um momento em que inclusive as camareiras pulavam o quarto dela na arrumação. Foi ficando, imperturbada. Sem altivez, a impassividade com que tratou eventuais recepcionistas novos gerou frieza, não inimigos.
O recepcionista contratado recentemente creu notar mudança na rotina rígida: em geral, Frida deixava o quarto a cada três dias para voltar duas horas depois com sacolas plásticas com cujo conteúdo abastecia o frigobar capenga. Ele percebeu mais de uma vez ruídos grasnidos vindo do andar de que ela tinha praticamente se apossado. Imputou à falta de sono os movimentos que passou a intuir vindos de dentro das sacolas. Relevou quando ela deixou de sair do quarto: ela pagava mais é um mantra repetido pelo gerente entre levar a cabo seu tique de morder o anular direito e apertar a mão de um recém-reconhecido Jonas.
Pede ao recepcionista um molho de chaves guardado num compartimento separado, Frida nunca permitira as fechaduras eletrônicas convencidas por cartões magnéticos. Um tapinha desagradável no ombro do Jonas incentiva a também subir as escadas. Completamente mudo, alvo de um medo incipiente, não tendo decidido mas forçado a acatar as razões do gerente gordo tipicamente simpático, Jonas desistiu de ouvir e não reage aos conselhos sobre como ser bem sucedido na terceira maior cidade do país. Ainda no lance da escada a dupla insólita ouve uma algazarra em um dos apartamentos a qual cessa, atingido o corredor. O gerente finca o dente no dedo trêmulo ao enfiar a chave na fechadura; o corpo não foi removido ainda, será tarefa do Jonas reconhecê-lo para encaminhá-lo a autópsia. A luz do sol vinda através da vidraça do janelão aberto do cômodo mitiga a atroz ordem planejada.

Descrição pericial:
  • 99 pássaros diversos empoleirados em móveis, todos mastigando.
  • 1 agenda aberta jogada no chão.
  • 1 esqueleto conservado sentado em uma poltrona de couro.

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