sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Do palpável convenientemente interino.


O velho não acordou no dia em que não era pra não acordar. Aos olhos áridos desacordados de coruja só foi possível intuir o contorno das coisas no quarto por meio de relances que driblassem o filtro das pálpebras. Aqui um fim de pá de ventilador, ali uma insinuação de gaveta do armário, atrás da porta passos indos e vindos, cujas pausas funcionavam como metrônomo da paciência do velho expirando, no ritmo do peito menos arfante a cada pássaro de oxigênio de que fica desobrigado. No máximo sentiu um formigamento na ponta dos dedos ao dar-se conta de que não podia movê-los. Mas ao dar-se conta de que não podia qualquer outra parte do corpo expirou um pássaro pesaroso, mais almejado que acontecido. Isso é um corriqueiro que tentara na juventude dissipar com concentração, tumor repentino transtorna a quietude da fauna interior. Ao som do rangido de alguma porta do apartamento abaixo do seu, recapitula vezes em que despertado não conseguia se mover, a letargia das serpentes dos músculos em abocanhar a hibernação dos ossos; um inverno ad hoc cujo fim uma força aleatória designa predispunha os animais a ser menos colaborativos. Um médico amigo da época de amanuense de alguma repartição de algum órgão de alguma secretaria ligada à saúde aduzira vagamente algo de sabe-se lá que hormônio imobilizador das marés de contração voluntária; não adiantou. Sua menstruação, uma vez por mês a cama lhe constringia os movimentos com tal força que mesmo depois que passava sentia vergonha de contar à mulher o ocorrido, como se os cardumes imersos nas veias esquecessem de propósito a clausura imposta, e de volta à rotina nem vagamente aludissem ao evento: disseminada, pela falta de movimentos, a discórdia, não cogitavam ajudar o macaco vigilante do sistema límbico. Tanto é que a vergonha vinha difusa vedando ao velho discernir a fronteira entre o que a causa desta vergonha teria de palpável e o que de imaginado, induzido pelo sono. Tanto é que, se contasse à mulher, o saci cavalgando-lhe a língua poria palavras outras em curso, trabalharia árduo pra culpar o sono pela irresponsabilidade de contornar sombras como bem lhe aprouve. Conjecturando a rotina matinal que se via impedido de cumprir – ao que parece, naquele momento, a fome do coiote se satisfazia com acreditar ter comido, possivelmente persuadida a silenciar o fato de estar numa coleira -, o velho chega a resolver contar tudo de uma vez, embora sinta algo se debater, urrar dentro de si. Agrilhoadas, as entranhas definhavam ocultas atrás da imagem conservadora de velho dormindo. Desta vez o saci não precisaria desdobrar esforços, ela estava em uma excursão com amigas, balneário termal bem localizado com atividades especialmente desenvolvidas para a melhor idade, que a aposentadoria do marido, o qual não reveria, ainda estava pagando: ao entrar no apartamento, antes do sorriso de canto de boca, triunfante pela ordem impecável dos objetos, tal e qual deixara, o cheiro a repeliu. Tampando o nariz fez-se surda ao suspiro final do animal restante dos de dentro do velho, náufrago da carnificina interna incendiada insidiosamente pela preguiça geral; a mandíbula prevaleceu sobre os restos mortais silenciados, um latido provavelmente endereçado à lua que a mulher acabava de incandescer na sala. Longe de comovida, às portas do vômito, aproveitou a mala feita e fechou a porta atrás da pressa, sem tempo para perceber as flores brotadas das pústulas do corpo inerte esgueirando-se para a sala por debaixo da porta do quarto, ramificando para empoleirar na maçaneta.

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