quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Dentro.

Y viceversa.
Rodrigo Fresán

Não que eu seja assim impressionável. Embora persistisse a impressão de estar dentro da piada do filme, ou seja, uma cabeça de cavalo implantada entre os lençóis estaria espionando, rindo de mim com todos os dentes. Só faltava descobrir em que lugar da imensidão do colchão se esconderia. Bem que eu insisti para a minha ex-mulher levar a cama na mudança, eu insisti. O problema é, ela recusou levar qualquer coisa que não fosse sua valise de cosméticos – motivo da separação, aliás - e o trambolho restou aqui: grande demais para um corpo que cada vez vem precisando de menos espaço. Desde que ela partiu, ouvi cada vez mais barulhos vindos dos cantos da casa onde guardo trabalhos que esqueceram por aqui, de propósito ou não. Rebuliço de balidos, relinchos nos corredores, um crocitar recorrente vindo de trás de um vaso; minha casa virou um museu e o fato de os passos e ações dos objetos expostos ganharem voz à noite me deixa intranquilo.
Já deveria estar acostumado a estar cercado por um zoológico de impostores, e de fato estou; a questão é que nem mesmo o longo tempo de serviço me preparou para a casa começar a abrigar ruídos surgidos de lugares recônditos. Ruídos muito familiares aos que fizeram aquilo com que trabalho, sou empalhador. O fato de morar numa ilha não ajuda nada na minha profissão, taxidermista como diz a carteirinha profissional. Na verdade atrapalha: seja pela corrosão propiciada pela maresia, seja pela dificuldade que os parcos clientes encontram em chegar aqui. Por isso abri uma representação na cidade, comprei um quiosque para atender quem quisesse conservar o seu bichinho de estimação para todo o sempre. Fiz um acordo com o barqueiro em relação a todo dia trazermos os serviços de barco ao fim da tarde, na alta da maré.
O cavalo foi mesmo o mais difícil, o pouco calado do barco não comportava duas pessoas e mais um animal que pesava o que sete pessoas pesam. Pior, tanto o barqueiro não saberia acomodar o corpo do animal direito e provavelmente o largaria de qualquer jeito na praia à mercê das gaivotas, quanto eu não sabia manobrar o barco para desviar das pedras pontiagudas que cercam a ilha em que me isolei. Resolvemos esse problema de lógica na calada da noite; serramos a cabeça do cavalo fora e a deixamos em um freezer para não estragar. Tudo muito discretamente; não sou de falhar serviço e também não queria que o seu Abílio visse o querido animalzinho decapitado desse jeito. Chegando à ilha, depositei o corpo no freezer próprio; voltamos e eu pude recuperar a cabeça, que também congelei em casa. Posicionei a cabeça do cavalo de forma a não ter que encarar seus olhos embaçados ao abrir o freezer. Quando empalhasse, eu costuraria a cabeça ao resto e cobriria a sutura com pele artificial, ninguém daria pela artimanha.
E ninguém deu mesmo, nunca vieram buscar. Cogitei avisar ao Seu Abílio que viesse com um barco robusto recolher o cavalo: faltou tempo hábil, ele morreu antes que eu concluísse o trabalho. Nenhum parente se interessou pela herança ou quis pagar pelo meu serviço. Pelo menos não me encomendaram empalhar o velho, em memória do qual o cavalo foi ficando. Era comum isso; por condolência com o trabalho feito, sempre sobrava por aqui alguma ovelha ou periquito a pagar, que eu, dependendo, jogava ao mar ou mantinha em casa.
A minha casa começou a impregnar-se de barulhos de bicho há umas duas semanas. No começo, discretos, não diferiam muito dos grilos que sempre cercaram a casa e dos cupins que costumam roê-la por dentro. Imperceptíveis, pareciam com a impressão de aparelho eletrônico ligado em outro cômodo, uma estática de fundo: subliminar. E mesmo quando a intensidade aumentou a níveis alarmantes, sempre restava a desconfiança esperançosa de ser um relance, ou um engano. Um coaxo aqui, um pio acolá. Sempre breves o suficiente para demarcar um rastro na audição, nunca o som em si. Um zumbido ali. E eu que nunca tive dificuldades em dormir, comecei a trabalhar madrugada adentro, queria cansar bastante e dormir direito depois. Porém, quando não ir à cidade durante o dia provocou uma queda drástica no número de pedidos, recuei ao turno do dia. E aos tormentos noturnos: interrogações dentro da cabeça sobre ter ouvido ou não um mugido vindo daquele chifre esquecido encima da estante.
Tecidos moles são prontamente retirados, logo no início do processo de embalsamamento. Os olhos, por exemplo, são substituídos por próteses de vidro. Técnicas modernas conservam as vísceras injetando fluído plástico no sistema circulatório do que se quer empalhar. As técnicas antiquadas, das quais sou simpatizante por falta de recursos, lançam mão da palha para preencher o espaço deixado pelos órgãos ao ser retirados. Pessoalmente uso fibra de coco para isto por ser o material mais a mão.
Deitado na cama em que cabem oito de mim, lado a lado, gastava boa parte da noites da primeira semana classificando o que eu ouvia. Se cochilava por alguns instantes, logo o gemido de dobradiça enferrujada me arrancava do sono para me largar em um sonho; acordado ou dormindo comecei a detectar seus passos em rotas sonoras pelo assoalho da casa. Foi aí que eu aprendi: um casco fendido pisar no chão de madeira faz um som diferente de um pato chapinhando sob os móveis que faz um som diferente de uma rã esparramar água, atingindo o fundo da pia de alumínio. Quando vi a sombra de uma mariposa translúcida, com o respectivo orifício causado por alfinete na barriga, traspassada pela luz da lua voejar basculante do banheiro adentro, resolvi que o exílio era a melhor opção. Levantei da cama, acendi a lâmpada e a casa toda se fez em farelos de silêncio, até os cupins pararam para escutar. A solução pareceu óbvia, então; conforme ia pelos corredores acendendo cada lâmpada, acabava por verificar que os animais eram apenas estátuas, portanto restritas ao lugar em que eu as repousasse.
Por via das dúvidas desisti do quarto. Já que tampouco podia trabalhar, meu refúgio foi a televisão. Subi no telhado, mexi na antena para fazê-la melhorar dos chuviscos. Confinado aos canais abertos, fiz esforço para me entreter com reprises de reprises de filmes há muito exibidos. Um ou outro pornô salvou algumas noites; ainda incomodava a impressão de movimentos de silhuetas atrás do sofá, no limite periférico da visão, embora eu me negasse a perceber os ruídos crescendo. Sono eu tinha e tenho muito, habitualmente dormitava ao longo de um documentário sobre animais e despertava em um filme de luta, qualquer combinação assim. As luzes permanentemente acesas não facilitavam. A suspeita recorrente de estar inventando não facilitava. Acordava bem cansado, todo torto por causa do sofá, dor nas juntas e no pescoço.
Voltar à cama estava fora de cogitação, vá lá saber quais são os planos desses bichos ou o que eu descobriria se abrisse a porta do quarto. Aqueles barulhos praticamente me expulsavam de casa; um pouco mais a cada noite por mais que eu pretendesse submergir nos programas da TV. Era crítico, daqui a pouco eu teria que fazer uma cabana de folhas de palmeira na praia. Nem jogar um deles no lixo ajudou, durante a noite os ruídos eram igualmente intensos – algaravia de convenção – e ao dia seguinte a pomba retornara ao poleiro de onde eu a desalojara.
Esta noite era para ser especial, não sei que milagre aconteceu para anunciarem uma exibição da maratona d’O Poderoso Chefão. Eu nunca vira o filme, por mais que morresse de vontade. Inclusive dormi durante o dia, no sofá também, para ter a disposição de encarar as quase oito horas de duração total da trilogia. Abri um refrigerante e peguei amendoins. Em vão tudo, só agüentei até a cena do casamento antes que o sono se apoderasse das pálpebras; fui domado por um estupor que oscilava entre vigília e sono. Baita filme chato, fico até agora indagando se a cena cabeça de cavalo deixada na cama para, por meio de um senso de humor característico, assustar era cena do filme ou do resquício do sonho.
Sei que não agüentei mesmo. Ignorei ter derrubado a mistura de refrigerante e sal dos amendoins encima do controle remoto e cambaleei rumo à cama que vinha evitando há semanas. Nisso de trôpego de sono abandonar o filme nem atentei para os ganidos, cacarejos, miados que - suponho - pululavam ao meu redor. No meu sonâmbulo trajeto insone preocupava mais o som do abajur que demoli ao apoiar a mão em uma mesinha espatifando no chão. Rebotalho da partida da ex-esposa; ela decorara a casa para não querê-la à hora da divisão dos bens? pois bem, agora meu inconsciente suplicava por essa purificação. Mentira, sem regozijo pela destruição da mobília, que é provável que os bichos comam quando eu não esteja mais aqui; a bem da verdade, eu só queria dormir. Por isso o descaso ao pisar nos cacos de porcelana. É bom fazer o máximo barulho possível para espantá-los.
Girei a maçaneta com a mão esquerda, enquanto preparava a direita. Hesitante porém negligente, abri a fresta entre a porta e a moldura com o tamanho exato para caber a minha mão; percorri urgente a parede com os dedos até localizar o interruptor. Vislumbrei num relance após acender a lâmpada, o quarto ressonava semelhante a como eu o deixara. A diferença se resumia à janela fechada, a qual escancarei para arejar escuridão. O meu medo era o percurso entre o interruptor e a cama por ter de ser cumprido com a luz apagada. Apaguei, um raio da luz da lua incidindo diretamente sobre a cama deu a impressão de que algo avolumava sob o lençol; fechei os olhos de vez, pois não quis descobrir. Deitei, restauraram os estrondos mais alto que nunca. Sempre de olhos fechados, era como se de rabo de olho eu presenciasse movimentos do vulto à esquerda. O quarto todo tornado um teatro de sombras.
Não que eu seja assim impressionável. Mas a impressão de que a cabeça sangrenta do cavalo rir da minha cara em algum lugar sob estes lençóis dificulta o sono fica diluída no sono acumulado. Por sorte ou por azar é esse mesmo sono acumulado que me faz duvidar entre ser sono, sonho ou realidade o fato de que começam a eviscerar meu tórax. Já o farfalhar da palha ao ser socada dentro de uma cavidade corporal é uma sensação mais plausível e próxima a mim, provavelmente consciente.

0 contos de réis:

Postar um comentário