quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A saliva do vento.

1. O prato é de arroz com lingüiça. O restaurante um daqueles que pululou pelas comerciais quando se notou que a lei sobre destinação de área pública viera sendo revogada informalmente havia pelo menos quinze anos. Self service comezinho em que me sento em uma cadeira na extremidade da mesa grande sem precisar pedir permissão a quem já está; parecido com os outros dois que freqüento. Positivo, são três os restaurantes entre os quais organizo os almoços da semana, desde que pararam de pedir as marmitas. Esse de hoje é perto, fica no bloco debaixo do da agência, os outros dois ficam na outra quadra e eu vou de carona com uma Eufrásia, com quem acaba não sendo lá muito agradável almoçar; graças a deus hoje me livrei da companhia dela. A outra pessoa com quem compartilho a escala prefere ficar passando o uniforme a ferro para compensar o amarrotado do dia, pede comida da agência mesmo. Eu gosto de misturar as lingüiças no meio do arroz para depois farejá-las com o garfo. A bem da verdade, o arroz é mais para baratear a coisa toda: esse é meu prato recorrentemente e sempre ao sair do buffet resta o suspense sobre se eles cobrarão a ocupação de mais de cinqüenta por cento do meu prato por carne. Uma vez cobraram. Porém devo admitir que às vezes ganho esses descontos que eles têm para o caso de o prato da pessoa pesar um número redondo, então não sei se no longo prazo acaba compensando. De qualquer jeito, volto: as terças e as quintas-feiras são deste restaurante; os outros dias são dos restaurantes na outra quadra, segundas e quartas do restaurante onde um cliente me reconheceu e as sextas são do chinês. À exceção desta semana: hoje é quarta e o restaurante das quartas estava fechado por algum motivo, a Eufrásia foi comer em algum outro lugar e eu voltei pelo meio da duzentos andando contra o que parecia ser um redemoinho no meio da quadra de esportes, o pó fustigando os pilotis e irritando minhas pupilas, irritadas de antemão pela secura do ar. Por isso ao me servir vi rostos não habituais; também por ter chegado aqui fora do horário de sempre tive de me atrasar mais ainda e subir à agência para me adiantar e vestir logo o uniforme: tenho dez minutos para almoçar e sair a campo.
2. A probabilidade é palpável de que não ter almoçado hoje valha a pena, pois as chances de o Cícero estar agora de barriga para cima bebendo cerveja, arrotando e vendo algum dos programas de futebol dos que passam no começo da tarde é alta, o que espicaça minha curiosidade, ainda mais porque ele sabe de nada. Quer dizer, saber que andou comendo gente que não devia ele sabe, muito embora possivelmente nem saiba o quanto excedeu o limite do cartão de crédito da Vilma. Aguardo ansiosa emergindo a mão num saco de batatinhas fritas que comprei na banca de jornal, sentada sob o pilotis do bloco contíguo ao do Cícero. A vista ótima do apartamento, o tempo amainando a hostilidade da secura e o silêncio vigente sob a égide dos zunidos das cigarras melhoram bastante meu ânimo. Estou com uma sede que será mitigada caso eu compre a garrafinha d’água que eu andei pensando em comprar. O problema é andar até a banca com esse poeirão, esqueci a minha e receio que os desdobramentos da história não me esperem voltar.
3. As pessoas olham estranho, no momento divido a mesa com um casal quase gordinho sentado lado a lado sem parecerem incomodados com o estrépito do ventilador sobre suas cabeças; uma garota branca de olhos puxados que não desvia os olhos do prato nem para trocar de faixa em um MP3 player, cujo volume concorre com o do ventilador; e sobrou ainda a mulher de olhos esbugalhados e gestos atônitos sentada iate de mim. É essa que está me encarando desde que interrompeu minha refeição com a pergunta sobre se o lugar estava reservado. Respondi nada e meu silêncio foi para não precisar fazê-la notar que a função essencial das mesas grandes ali era desobrigar, na hora do almoço ou em qualquer hora de afluência considerável, a comunicação entre clientes. Sentou fincando os dentes superiores no lábio inferior, desviando dos olhares que recaíram sobre ela, e achou melhor se concentrar em esgravatar algum bife do prato enorme, que interpôs – a modo de fronteira - entre a minha presença e a dela. Os outros comensais – na verdade, só o casal, a menina é alheia - são mais discretos, me olham de rabo de olho a cada minuto mais ou menos; pausada e ritmadamente dão a entender que há algo à mesa incomodando mas não esquecem de dar a entender também condescendência em não querer reparar no estorvo, por mais que o estrago já esteja feito.
4. É ele, só pode ser; mais pela roupa ridícula do que pela descrição. A Eufrásia nunca me contou que eles tinham que usar colete verde e cartola laranja em serviço, se limitou a contar que era uma firma de cobrança. Pus comida demais e ele está terminando, tenho que acelerar senão não consigo acompanhá-lo. Sei que ele vai ao meu apartamento hoje, vai agora cobrar do meu marido dívidas que ele fez para presentear uma amante. Posso flagrá-lo no momento em que esse homem à minha frente começar a coagi-lo, encurralá-lo a responder de onde vieram essas dívidas. O plano é mais eficaz do que parece, meu Cícero acha que eu estou trabalhando, ficará surpreso quando souber que há duas semanas tirei um extrato no banco e desconfiei ao ver cobrança de inúmeros buquês de rosas com que ele não me presenteou. O Cícero não trabalhar, dou uma mesada a ele para complementar a pensão por invalidez, e parasitar a minha culpa permitiu que ele fosse ainda mais espaçoso, o ócio é a oficina do diabo. Combinei tudo com a minha amiga, sorte ela trabalhar na agência. A surpresa perfeita. Um casal à minha esquerda também olha para o ridículo de esguelha de vez em quando, pelo menos assim, dando mais na cara que eu, acobertam as minhas intenções. A discrição me salva de que ele descubra meus objetivos, tanto é que não olhou para mim nenhuma vez, está mais preocupado com o barulho que o ventilador faz e com o fato de esta mesa estar um pouco apertada mesmo com uma cadeira desocupada. Pelo visto ele almoça sem pressa, embora eu saiba que a Eufrásia atrasou as coisas de modo a ficar sobrando apenas dez minutos para ele almoçar e chegar no prédio. Sem pressa a ponto de mastigar algumas irritantes, porque insolentes, vezes um solitário pedaço de lingüiça, rolando-o de um lado ao outro da boca despreocupada, me dá tempo. Algo o incomoda, sinto isso. Talvez o casalzinho aborreça com a curiosidade deles. Não sei o que poderia incomodar, vir vestido desse jeito a um lugar público é pedir para ser encarado do momento em que entra ao momento de ir embora. Eu faço a discreta - o problema é o tanto de atenção que ele chama para si, apesar de que isso, além de um problema, é o chamariz do trabalho dele. Acelero as garfadas, embora não dispense a sobremesa.
5. Ela continua me olhando depois que levanto e me apresso a ir pagar a conta. Provável curiosidade ocasionada pelo uniforme. O casal tenta disfarçar risadinhas perceptíveis. A cobrança é na quatrocentos e sete, é possível ir andando mas eu não quero sujar o fraque, a limpeza é o aspecto mais importante do impacto coercivo que o meu trabalho pressupõe. Deixo o restaurante sob uma salva de sensações constrangedoras de estar sendo observado: apupos invisíveis, palpáveis. Insiro a chave na ranhura, os dedos da mão esquerda chafurdam o bolso atrás de moedas que, não encontradas, digo para o flanelinha que ficarão para a próxima. A mulher de olhos esbugalhados sai quase junto comigo, o gemido de metal de pulseiras entrechocando atrai a atenção para todo mundo perceber ela se afastando; retribuo o sorriso entre acanhado e repreensivo dela com um meneio da cartola segundos antes de entrar no carro. Estacionaram em fila dupla atrás de mim, que apesar do atraso sempre achei uma vaga regular. Três minutos dos dois que eu tinha foram gastos em esperar o condutor vir tirar o carro. O véu de poeira de vigente cascateando do céu para o chão me permite enxergar escassos três metros adiante. Tomo o eixão, uma aglomeração insuspeitada de carros na entrada para a comercial chegou perto de impedir que eu descesse na sete. Eu vinha pela esquerda para tentar contornar os carros e entrar só mais na frente. É tranqüilizante no trânsito olhar o jeito de dirigir e mesmo o rosto dos outros motoristas e tentar desvendar que tipo de dívidas terá, e se para o pagamento de alguma delas os meus serviços se fariam necessários. Desnecessário dizer que eu não tirar a cartola ou o colete para dirigir também suscita certa atenção de parte de outros motoristas. É mais fácil me deixarem entrar ao sinalizar com a mão direita se esta mão direita estiver coberta com a luva couro italiano branco. Também é desnecessário dizer que o calor e a sensação de poeira que o suor empapou entre a pele e as roupas já me fizeram pensar em largar tanto a profissão quanto a cidade. Embora pouquíssimas outras tarefas pudessem ser compensadoras como essa é. Checo um endereço transcrito em garranchos num papel que deixaram sobre a minha mesa e que agora tiro do console do veículo. Eventualmente dão o espaço de que preciso para entrar com o carro, consigo descer a tesourinha. Estaciono nas comerciais das duzentos pois fica perto e torna mais fácil a saída; em caso de imprevisto não preciso manobrar nas vagas esquálidas para moradores do prédio. Abro o porta-malas e retiro a maleta e a bengala. O brilho do sol no castão trabalhado em estanho na forma de cabeça de um leopardo chama a atenção das pessoas, com uma cegueira momentânea. As rachaduras na calçada por entre as quais viceja um tipo de mato acompanham os passos que demoro até o prédio, a poeira adensa nas minhas narinas. O prédio não tem porteiro¸ só guarita vazia. Toco o interfone do apartamento, espero que ninguém atenda e eu possa ir embora. A campainha soa, irrespondida, por quase meio minuto.
6. A coisa toda ficaria valendo menos a pena se eu não estivesse aqui para assistir. No que eu marquei a cobrança e liguei para avisar a Vilma, verifiquei os meus horários e agendei minha folga. Ninguém interpelou desconfiado até agora, escondida atrás do carro posso ver a movimentação morna de gente entrando e saindo na quadra, posso ver o vento suscitar redemoinhos aqui e acolá ao falhar em infiltrar janelas devidamente seladas. O apartamento do Cícero é no primeiro andar e do lugar em que estou dá para ver obliquamente o nervosismo dele andando de um lado a outro do apartamento, as mãos nas costas, os olhos não sabendo onde pousar, os passos vagarosos de deter-se e espanar um pó imaginário de objetos, virar-se a procura de mais um objeto para escarafunchar com os dedos ávidos por sei lá o quê. Os devedores são avisados da visita dos nossos cobradores com vinte e quatro horas de antecedência. Ele morar logo no primeiro andar facilita as coisas, eu quero assistir a vergonha. E não só o constrangimento, de praxe e que o cobrador está habilitado a infligir; me refiro a uma vergonha mais daninha. A Vilma não sabe que eu estarei por aqui e ainda não resolvi se ela deve saber. Ele está nervoso porque fui treinada para durante a ligação emaranhar o devedor de tal forma a que ele tenha certeza de que podemos encontrá-lo quando queiramos, e que é melhor facilitar as coisas para o nosso lado marcando um horário em que se esteja disponível.  O Cícero concordou rápido até, apesar da exorbitância da soma que lhe será cobrada em poucos minutos.  As regras de confidencialidade da empresa me impedem de colocar o atraso do Estevão nos registros; pontualidade é uma regra cujo cumprimento cobramos que seja feita a risca. Tudo bem, vou anotar isso e compensar em alguma sanção futura, cuja arbitrariedade camuflarei. Às vezes uma lufada de poeira me atinge bem nos olhos, tenho de abaixar de novo. O dono do carro que serve de esconderijo aparece e me cumprimenta antes de entrar e partir. Nada do cobrador, que só encontro remotamente ao resolver dar uma volta, e quando finalmente avisto, o Estevão está tocando o interfone na portaria errada.
7. Ele está chamando errado, a entrada não é aquela. Está segurando um papelzinho e tentando lê-lo à revelia da poeira, mas os olhos tornados intermitentes pelas pálpebras fechando com freqüência traduzem pouco desconcerto. Melhor sair da fila dupla, nunca se sabe quando um policial desses pode surgir do meio do vagalhão de pó e detritos. Procuro outra vaga, estaciono em local proibido mesmo - se o caminhão vier esvaziar os contêineres de lixo, eu saio. A vista daqui é pior, só consigo ver a manga laranja da sobrecasaca, braço erguido possivelmente chamando o apartamento errado e me frustrando na possibilidade de ver o Cícero ser enxovalhado por um palhaço de fraque. Se bem que, pensando bem, ele não sabe que eu sou mulher do Cícero, sempre posso ir lá e perguntar se precisa de ajuda. O problema seria se a polícia multasse o carro. Desde que o meu marido se envolveu com essa amante, só eu que tenho perdido as coisas. Mantive a mesada dele mesmo depois que extratos bancários revelaram tudo; fingi ignorância até quando um brinco que mamãe trouxe do exterior para mim sumiu. O Cícero é, sempre foi, um pobre coitado, a doença dele é só mais um pretexto para arrancar dinheiro de mim e foi oportunamente adquirida ao chegarmos às vias de nos separarmos. Não pela traição em si, nos separaríamos porque apesar de ele me amar do jeito dele e eu o amar do meu jeito dedicado, a dependência dele estava degenerando meu contra-cheque. Talvez tivesse sido melhor, aí ele veio com essa tal de doença nos gânglios nervosos. No começo até intensificou os cuidados por mim; amoleci e ele se instalou de volta no apartamento com as regalias posteriores. Contratei uma enfermeira para cuidar dele durante o dia. Acho que é ela a outra, devo descobrir hoje.
8. Não atenderem ao interfone não me desobriga. O problema é justamente o prédio não ter um porteiro a quem eu pudesse entregar uma notificação de comparecimento. Uma intimação judicial seria algo extremo demais para uma firma como a minha, que age para-oficialmente. Os garranchos da Eufrásia estão quase mais indecifráveis que o habitual; apesar da preguiça supõe-se ser minha obrigação profissional e ética, além de tentar contactar o cliente continuadamente por dez minutos, tocar o interfone nas outras entradas. Nem que seja para desencargo de consciência, eram as palavras da cláusula do contrato de admissão na empresa, como se coubesse a mim e não aos clientes limpar a consciência.
9. Ele é lento demais nas coisas, a roupa risível deve atrapalhar. Pelo menos parou de tocar o interfone, agora só está encarando o painel de botões enquanto dedilha a aba da cartola. Quanto ao Cícero, perdi de vista quando ele saiu da sala, deve ter ido ligar para a vagabunda de outro cômodo, por casualidade um onde não posso bisbilhotar. O idiota do fraque talvez não revele quem ela é, mesmo assim de hoje não passa. Seria melhor ir avisá-lo de que a portaria está errada; por outro lado, eu sozinha dar uma prensa no Cícero tampouco cairia mal, a vida mansa dele dura tempo demais. Se bem que o serviço já estar pago também não quer dizer muita coisa: um cobrador que erra a entrada certamente será engambelado pelo meu marido, o qual com certeza faria de tudo para evitar ter que pagar. Pão-duro o Cícero nunca foi, ele deve estar mais preocupado com agradar sua manteúda do que com esconder evidências. Melhor para mim, pena que acaba hoje e nem tenho tempo de estabelecer entre nós um jogo de insinuações que a consciência suja dele não o deixaria ganhar.
10. A demora do Estevão em achar o apartamento infringe normas demais ao mesmo tempo para não soar proposital. Ainda mais sob um vento e uma poeira como estes, qualquer um teria preferido entrar a ficar olhando o painel do interfone feito um aparvalhado. Qualquer um menos o cobrador, que ignorou gente abrindo a porta chegando e saindo em prol de identificar o devedor. Cheira a má-fé, no mínimo a má-vontade. Passando rente, entre um carro mal estacionado e a escada que dá acesso ao pilotis, enxergo um último pássaro; refugiando-se em uma abertura do cimento, a probabilidade de que preveja melhor que eu um derradeiro golpe da poeira levantada pelo vento é alta. Subo a escada sem que o Estevão me veja, meus olhos de relance recaem sobre uma cabeça também espiã das ações dele. Do alto do pilotis reconheço uma cabeleira de mulher, parcialmente recoberta por uma lataria, ajudada pelo brilho que o sol incidindo provoca. Ligo pouca importância, mulheres bisbilhoteiras há em toda quadra e alguém com o uniforme que nossa empresa adota chama bastante atenção; mesmo se a minha suspeita for confirmada, e a mulher for a Vilma – o que não muda nada porque ela ficará quieta, assistindo-, remotíssima a chance de ela influir em algo, a não ser que o cobrador preste mais atenção a rabos de saia do que ao trabalho, fato verificável.
11. Suspira ao sentar, irregularmente, sobre a barra superior da grade fronteiriça entre o pilotis e o jardim. Olha em volta, aperta os olhos contra a poeira que insiste em invadir sua zona de conforto. No que alguém que um xale protege da poeira surge na frente dele, ele volta a pisar no chão: o corpo retesado numa aparente continência. Hierarquicamente, o cobrador deve ser o subordinado: quanto mais gesticula, mais os movimentos de sua interlocutora vão se restringindo a meneios curtos de cabeça. Pela expressão dele, não posso afirmar que ela assinta a alguma coisa: desde sua aparição, ele não parou de falar e de todo jeito a cara dele é a de alguém sendo duramente censurado. A mulher cujo rosto para mim está coberto por cabelo esvoaçando, espera pouco, age antes de dar tempo para ele sentir-se confortável em olhá-la nos olhos. Visivelmente constrangido, o cobrador tem o antebraço empurrado com uma leveza firme por ela, quase à guisa de sugestão. Os dois caminham bastante juntos em direção às outras entradas do prédio, onde não posso vê-los por causa da minha posição desfavorável. Prefiro ficar aqui a perder uma volta do Cícero à sala do apartamento. Uma volta cujo deleite consistiria mais em flagrar sua preocupação do que ser voyeur sem que ele detecte minha presença. A conservação da beleza dele não é o foco hoje, eu poderia até assistir ele comendo a tal amante, contanto que segundos antes do orgasmo eu percebesse no rosto dele uma ruga que fosse de preocupação, remorso.
12. Anotei o endereço errado no formulário. Um instinto de preservação pode ter guiado meu relatório prévio, e depois meu senso acusatório. No cenário presente eu trocaria fácil poder esculachar o Cícero por mim mesma, antes de expô-lo à inépcia de alguém uniformizado de laranja e verde-limão. Estou disposta a relevar as traições dele, embora cumpra exigir algumas medidas anteriormente à reconciliação. Se ele recusar pior para ele, tenho a faca e o queijo na mão. Enquanto incentivo um Estevão, a cuja surpresa sobre minha presença aqui não reajo, mostrando qual é a entrada certa – a porta destrancada facilita -, pondero sobre a irresponsabilidade da Vilma: ela está jogando a vantagem do elemento surpresa no lixo aqui, e isso movida só por despeito. Fosse eu, a partir do momento em que deixasse de amá-lo, agiria com maior frieza: ficar na espreita maximizaria meu ganho. Sempre me encarreguei deste tipo de pensamento na amizade, isso explica eu ser a amante e ela quem financia isso. Abro a porta de vidro, as mesuras cavalheirescas do Estevão para que eu entre parem uma idéia, incubada pela curiosidade inoportuna da Vilma. O saguão exíguo está arejado: no trecho da escada que liga o pilotis ao primeiro andar há duas basculantes esquecidas abertas, para ventilar – é duvidoso que consigam -, filtrando a parcela de poeira destinada ao piso da escadaria do prédio.
13. O pedido da Eufrásia não é de todo descabido. A despeito da irreverência do que ela apresentou como método moderno; levando em consideração o perfil psicológico do devedor, amaciar a situação por meio do uso de uma mulher como iniciador pode funcionar melhor do que o esperado. Sussurrando para que o assim chamado Cícero não anteveja a iminência da nossa atuação, combinamos a minha entrada para cinco minutos após a da Eufrásia, cuja desculpa para ser recebida por ele será a de que a espera por uma amiga que vive no apartamento em frente deu sede. A secura da cidade perdoa todo tipo de pecado, inclusive o de abrandar as defesas um devedor para depois aproveitar a guarda baixa e vir com carga máxima. Eufrásia garante que este método foi testado com eficácia na Europa. Ela prende os cabelos em um coque alto, levanta ligeiramente o cós da saia para evidenciar mais as coxas e repassa um batom mais vermelho que a poeira levantada nesses dias. Pergunta se está bonita antes de recomendar que eu saia do caminho; de preferência me refugie no saguão até dar os cinco minutos combinados. Ao descer, sapatos estrondosos quase põem o plano por água abaixo; durante o caminho escada abaixo movo os lábios desejando uma boa sorte à Eufrásia cujo entendimento espero que ela seja capaz de desempenhar usando leitura labial. Antes de virar à direita na espiral da escada ainda presencio um retoque de última hora na roupa, ela ajeita o sutiã com um esgar de satisfação.
14. Com um esgar de satisfação e não de medo, o Cícero atravessa a sala sem camisa, vindo do quarto. Para se ter uma idéia, o apartamento é tão baixo que posso ver as gotículas de água pontilhando o rosto dele, remanescentes do que suponho ter sido um banho ou no mínimo uma passada de água no rosto. A cara de quem domou aflição, num passo tão sincero e entregue que me faz me perguntar se ele pode ter limpado o dinheiro da minha conta sem eu perceber. A campainha me lembra que o Cícero nunca olha através do olho mágico ou pergunta quem é. Isso, hoje, aumenta o constrangimento e o espalhafato daquilo por que paguei e que me postei para assistir. Sede do cão, ainda mais vendo o cabelo dele reluzente de água de há pouco tempo. A verdade é que eu não sinto a menor vontade de estar lá agora, a única intenção agora é aliviar o calor abafado. Abre a porta, o cobrador demora um pouco para entrar, bem que acho estranho o sorriso que ele abre de ponta a ponta. Frações de segundos depois já me desenganou; puxou pela cintura e lascou um beijo em uma mulher que identifiquei pelos cabelos cobrindo parte do rosto como sendo a mesma do pilotis e que mais tarde identifiquei pela canalhice como sendo a minha amiga que sempre quis as coisas que eu tenho. Sem palavras, Cícero arrancou os botões da blusa dela ao abri-la tão de supetão quanto fez com a porta e começou a beijá-la de novo, pelo pescoço desta vez. Os braços dela no começo fingem que tentam repelir os dele, até caírem submissas a uma força que ela quer que seja maior, a qual termina por deitá-la em um sofá cuja visão plena o encosto me veda. Ainda por cima largaram a porta aberta os dois desgraçados. Preciso evitar que a vizinhança saiba disso tão escancaradamente. Um vulto passa de raspão pelo corredor, distingo a sombra alta e mais nada.
15. Cinco minutos resultam insignificantes pra a rotina de um prédio desses, pacato das quatrocentos. A maior mudança percebida foi o incremento da intensidade do vento, com um ou outro redemoinho atingindo altura maior que a minha. Menos mal que a me posicionei estrategicamente: resguardado das intempéries pelo vidro do saguãozinho e prestes a executar logo o serviço para poder ir embora de uma vez. Serviço esse de que a minha amiga Eufrásia já realizou grande parte. Algo me diz que chegando lá encima, o pobre vai estar tão entregue aos encantos da Eufrásia que entregará dinheiro e assinatura sem pestanejar. É bom sair mais cedo às vezes. Subo as escadas ouvindo o vento rumorejar através das frestas das basculantes. A porta de madeira está providencialmente aberta. Enquanto isso ouço o baque da porta de vidro do saguão. A sala está vazia, o que vejo é um pássaro empoleirado no parapeito da janela e uma trilha de gotas de água sobre a passadeira que é a trilha entre a porta aos sofás. Não obstante o paradeiro desconhecido da Eufrásia, ruídos vêm de dentro do apartamento, quase superando o das cigarras, que recrudesce. Bato palmas para ninguém. O eco vibra e, se desceu as escadas, dificilmente escapou de tropeçar nos olhos esbugalhados dela.
16. O Cícero, impassível, acredita piamente em que o Estevão não terá coragem te mudar o comportamento de palmas para invasão de domicílio. A estratégia usada é clássica e ainda insolúvel para nós, basta ignorar o cobrador até ele desistir. Por via das dúvidas, ele me trouxe para o quarto da empregada. As chances de ele comer a empregada nesta mesma cama em que agora o espero são altas. Me resigno a ser a principal; sem pedir mais atenção do que a que ele me daria, fica mais fácil controlá-lo de um jeito subliminar. Não é difícil conseguir as coisas sem ferir os brios de um homem: o Cícero, por exemplo, está trazendo um copo d’água e um lençol limpo neste instante. A solução é chantagear em troca de sexo, são incríveis as coisas que ele faz por ter pernas abertas. Ao voltar vou fazê-lo acreditar que ele teve a idéia de me presentear com algo que ainda vou decidir. Chamo por ele.
17. A cartola absurda e o colete incompatível com esse calor me obstruíram a entrada por pouco tempo. Simultânea à pergunta sobre quem ele é, ouço gritarem o nome do meu homem dentro do apartamento. É voz de mulher. O cobrador não me reconhece: nem lembra que era eu no restaurante. Entro incólume, a despeito das perguntas dele acerca do Cícero. Sem ser convidado a entrar, ele me segue e senta em um sofá com as pernas cruzadas e a mão sobre o joelho. Não tenho tempo para idiotas que não desejo matar. No nosso quarto o Cícero não está, nem no escritório. A nossa sorte em não ter grana para comprar um apartamento maior é a pequena quantidade de aposentos em que ele possa esconder mulheres.
18. Apesar de ter machucado o meu pequeno, não tenho coragem de revidar. Ela destila sua fúria não contra o Cícero – apesar de descontar fisicamente nele -, nem contra mim. O problema dela é contra um arranjo que ela inventou que nós fizemos para ficar com o dinheiro dela. Por mais acabada que a amizade esteja, ela não tenta me agredir em nenhum segundo. Na verdade, a violência dela restringe-se a bater impotentemente com as mãos fechadas no peito do Cícero, que poderia dominá-la facilmente. As lágrimas dela confundem-se no piso com o rastro de gotículas que ele deixou. E soca e hesita antes de um pontapé que acaba desferindo. O semblante do Cícero é mais o de alguém que contém riso que um de contrição e arrependimento, cada um sabe a mulher traída que tem. O machucado ao qual me refiro é um corte no supercílio. Ao vê-la dentro do apartamento, o meu querido deixou cair o copo e no susto passou a mão pelo rosto no nervosismo. A mão retivera um fragmento ínfimo de vidro e propiciou um filete de sangue descendo pelo canto do olho, escorrendo pela bochecha e indo empoçar sob o queixo. A mulher continua descontando raiva nele, as mãos quase negligentes agora porque a preocupação com o sangue a distrai. Não deixa de ter lá sua graça vê-lo andando de costas com cuidado para não pisar nos estilhaços, recuando das pancadinhas com que ela o perseguindo.
19. Primeiro sinto uma pancada na nuca e considero fechar a janela para evitar pedradas desses vândalos das quatrocentos, mas já é tarde. Chega a mim como um redemoinho espesso, a sensação de ser engolida por um liquidificador. A concisão do tal Cícero veio tão fora de hora e resultou tão inútil quanto a minha metáfora pronunciada em voz alta. No instante em que refreia a fúria fingida da esposa para fechar a janela, objetos começam a inundar a sala: um retrovisor, um pote de margarina, uma casca de banana, um filtro de café com borra, diversas caixas - originários de um contêiner de lixo que o vento virou - e até um inverossímil pássaro: a sucata revestindo o tapete enxovalhado imundo e a vaga imensa de poeira erguida pelo vento arremetendo contra o prédio dissipam um pouco os ânimos, a ponto de o Cícero arriscar um sorriso para a mulher e um abraço que ela aceita durante pouco tempo. A indiferença do casal em vias de reconciliação me exila no corredor de entrada retirando-se para cozinha. Posso ouvi-los discutir sobre reembolso e é nítido o contraste, o tom geral de voz acalma, enquanto recrudesce a fome com que a terra vermelha come os pés do móveis, deixando visíveis deles apenas o que estiver a uns bons dez centímetros do chão. Ao que parece, por motivos que não me foi dado escutar, a mulher vai aquiescendo aos poucos; terá que pagar o sinal dado para autorizara realização do serviço, o galão de água mineral que o Cícero deixara pendurado, e mais o cartão de crédito, sem esquecer uma conta atrasada. Ouço uma terceira voz, chamando o Cícero, que identifico como sendo da Eufrásia, a cujo som a esposa reage com naturalidade chamando a minha secretária pelo nome. Visivelmente alarmado com o reconhecimento das duas mulheres, ele diz que tem de ir ao banheiro limpar o sangue e sai da cozinha fechando a porta para proteger as duas do vento. Já atravessando a sala rente à parede mais afastada da janela olha em torno de si como se certificasse da presença de alguma coisa ou quisesse testemunhar algo que planejou: anda na ponta dos pés palmilhando intuitivamente o melhor caminho através dos detritos e móveis revirados, acumulados na sala toda em pilhas de altura razoável.

20. Não faço idéia do que está acontecendo, só espero que o Cícero me deixe sair logo daqui, ou que ele volte. Parece que houve pancadaria neste apartamento ou no do vizinho, barulheira de coisa caindo no chão e quebrando. Se o Cícero não vier logo falar comigo, eu pulo da janela do quarto: é baixo, o problema seria rasgar as meias. Estou com muita sede e um pressentimento ruim, de que estão batendo na porta do quarto há muito tempo e eu não faço idéia de quem seja. A vó morreu assim, com o entrevamento desafiado por passos atrás da porta que toda noite tentava adivinhar de quem era. Se o Cícero não vier logo, hoje vai ser o último dia para ele.

21. A porta fechada abafar os sons esconde de mim as vozes das mulheres por pouco tempo. É o Cícero abrir a porta do banheiro e, consigo vê-lo inclinado sobre o batente de uma banheira, descerrar uma cortina com o vagar de quem espreita e se delicia que eu recupero as vozes de mulher, pelo menos uma delas. Uma que se dirige ao Cícero com estridência e à qual ela responde com um chiado e um indicador em frente à boca, pedindo silêncio. Tudo indica que é uma mulher o que desembarca da banheira, começo a identificar pelas pernas revestidas de meia-calça branca, em seguida flagro o braço do Cícero com o braço de uma outra pessoa a reboque; embora movam a boca, a janela que me esqueci de fechar provê a totalidade do som ambiente. A mulher que a banheira acaba de dar à luz veste branco apenas – com exceção de uma cruz grosseira e vermelha estampando o alto de um quepe branco ele mesmo - e toma tanto ou mais cuidado que o Cícero ao cruzar na ponta dos pés, mãos dadas com ele, o corredor para atingir a subseqüente sala atulhada de imundice. É simultâneo: vejo as duas abrirem a porta da cozinha para chegar à sala ao mesmo tempo em que o Cícero inicia a travessia dos escombros da sala, sempre guiando a mulher do banheiro, que é retida esperneando pelas outras duas. Dividem patrulhas: a Eufrásia fica encarregada de confinar e vigiar a mulher do banheiro na mesma ilhota do corredor de onde eu assisto a tudo, enquanto a esposa do Cícero pede para conversar com ele a sós. Não distingo muito do que vai sendo dito, mas o s gestos dela são ao mesmo tempo patéticos – em especial o convite à proximidade que ela produz usando o dedo indicador como isca chacoalhando – e sugestivos, tendendo a sedutores. Nem entre si nem comigo, a Eufrásia e a enfermeira trocam palavras: a Eufrásia, com ar de satisfeita, contempla o cataclismo revirando as entranhas do apartamento, neste instante um inverossímil ferro de passar roupa aterrissa bem perto dos pés dela; a enfermeira depois de roer unhas trêmulas, agarra a maçaneta da porta, embora saiba que o cenho severo e as mãos ameaçadora e calmamente pousadas no fim dos braços cruzados da Eufrásia não serão condescendentes com nenhum tipo de tentativa de fuga. Tomo coragem de mapear um caminho através dos destroços e ir fechar a janela, só o que retém meu primeiro passo em suspenso é um ruído vindo lá de dentro dos quartos prevalecer durante um segundo em que a tempestade amaina. Impossível ignorar um grito – começa com a indisposição de um soluço, mas é catalisado pelo silêncio abrupto e pela nova geografia de ecos que o reposicionamento dos móveis proporcionou - seguido de baque de que concluo que vem do corpo do Cícero tombando.

0 contos de réis:

Postar um comentário