sábado, 28 de agosto de 2010

E o lançaram ao mar, e cessou o mar da sua fúria.

Sua imaginação nunca era tão voraz 
como quando começava a corrigir o passado,
Alan Pauls

O telefone era dos robustos, cuja madeira encorpada a partir da qual construíram o corpo amplificou o toque. A madrugada específica estar deserta de sons também amplificou o toque, que quando respondido por Aleixo anunciou com voz feminina pelo bocal, que há meses não usava: um homem a cinquenta metros de distância tem o tamanho de um dedo, um homem a duzentos metros tem o tamanho de uma unha. Mesmo tendo acabado de acordar, o Aleixo que atendeu ao telefone enquanto limpava remelas com a mão desocupada não usava robe ou roupão como o resto das pessoas do bairro; dormia de cueca e nem lhe ocorreu calçar pantufas ao levantar trôpego de sono para tentar fazer calar o ensurdecedor do toque que nem a densidade do sonho em que se metera lhe permitia ignorar. Um sonho sobre a mulher que destacada da multidão o abordava. Com o rosto envolto em um lenço, ficava calada e dedicara seus passos a segui-lo; se Aleixo decidisse entrar em um café e esperar, ela ficava na porta, de guarda. A voz que saía do telefone não pareceu corresponder à figura esguia sobre sapatos de salto alto e passos submarinamente lentos mas mesmo assim. A mulher se aproximava dele de lado e sem olhá-lo nos olhos quando o telefone o convocou a ouvir aquela única frase desconexa para depois ter a chamada desligada em sua cara. No sonho as pílulas deveram ser tomadas no mesmo horário. E mesmo assim, Aleixo tremeu ao atender, pensando que ela o encontrara, por fim.


Talvez não seja difícil perceber que o Aleixo facilmente decidiria dar um passeio noturno após ser acordado às três da manhã só pelo prazer de infringir os regulamentos. Apenas calçou as botinas, recolheu uma cartela de anti-histamínico e saiu pela porta, mergulhou na névoa. Optou pelo carro, para levá-lo a um inverossímil lava-jato vinte e quatro horas; argumentou consigo mesmo que havia merda de pássaros grudada na lataria. Se ele arrancasse a merda com uma espátula, a mulher - que com certeza sabia que carro era o seu - poderia identificá-lo por meio dos arranhões na pintura; mas se deixasse a merda lá grudada, a mulher o detectaria por causa das pintas brancas na lataria vermelha. Logo desistiu do carro, resolveu se esgueirar perto das paredes vivas de rabiscos dos prédios, quem sabe as pessoas não o notassem. Ou se notassem estariam tão sonolentas de rondas noturnas que o deixariam livre por confundi-lo com um animal qualquer que tivesse rompido o perímetro estrito de convivência, um animal dos que não dá vontade de apedrejar. Mas e se? Se a mulher fosse quem ele imaginou, será que adivinharia a predileção por burlar o assédio dos moradores de rua a quem saía de casa àquela hora. Se fosse a mulher do seu sonho com certeza guardaria no bolso da gabardina um mapa do bairro em que estariam marcadas a tinta vermelha as rotas que Aleixo propunha si mesmo, sem nunca testar, serem de fuga. Fuga da mulher em que ele tropeçou. Ela lixava as unhas apoiada na barra para amarrar bicicletas que fica do lado de fora do self-service que o Aleixo freqüenta. Esbarrão, pedido tímido de desculpas, semi-sorriso e a impressão de que as lentes dos óculos dela não desviariam dos seus calcanhares até Aleixo perceber, rua abaixo. O restaurante é perto do apartamento, prolongou o caminho para testá-la.


Fácil detectar a perseguição, que ela pretendia sutil; ao que parece a sombra dela fazia barulho de cortina: farfalhava ao roçar as paredes. Aleixo engole trêmulo uma pílula, que viu reluzir sob alguma luz da rua.


A mulher do sonho foi muitas mulheres, que se desdobravam espalhadas em pontos estratégicos da cidade e comunicavam por celular a posição do Aleixo. A suspeita era forte de ver insinuarem-se mais de duas saias longas sobre pernas apressadas, ao mesmo tempo: uma atravessando a rua desviando dos carros, a outra carregando um ramalhete de flores que pelo trêmulo das mãos devia estar quente. À primeira silhueta de raspão, Aleixo retrocedeu desconfiado de que ela podia estar infiltrada entre os notívagos que abordam os passantes. Não que ela fosse uma dessas pessoas que começavam a encostar quando queriam alguma coisa. Retrocedeu e no meio do caminho estacou. Só televisores esquecidos ligados perto demais das vidraças dos apartamentos baixos iluminavam a rua, de resto muito escura. Parado evitando o céu reparou na coincidência de ter à esquerda o posto de saúde em que a mulher tinha cara de trabalhar. Se pergunta ao descer a rua os motivos impensados daquela caminhada e conclui que a mulher podia não ter descoberto tudo que queria ainda. Um palhaço escora o cotovelo na moldura de metal do fusca que acabara de parar junto ao meio-fio. Fusca é o justo carro que ela provavelmente dirige para vir trabalhar.

Boa Noite – Aleixo, que começara a andar ao ver se aproximar o carro, vira a cabeça em direção ao palhaço.

...

Oi – Entremeia os dedos ao cabelo próximo à nuca com fúria moderada, o corpo memorizou o horário do remédio.

Oi.

Boa Noite.

Que foi? – a hostilidade como disfarce da vontade de sair correndo.

O senhor pode me dar uma informação? – bocejo lança perdigotos na cara do Aleixo – acabei de chegar à cidade e preciso saber se tem alguma fotocopiadora aberto a essa hora. O corpo mole de preguiça ávida aponta o fim da rua, se livra do palhaço talvez triste antes de perguntar as razões de uma fotocopiadora de madrugada. Continua parado assistindo os pára-lamas do fusca dobrarem uma esquina lá longe, indeciso entre voltar para casa e permanecer onde talvez o assaltassem – ou pior ainda, puxassem assunto. Cumpre trajetórias curtas, que acabam voltando ao mesmo ponto. Sentado vê um lenço tremular em uma janela (quase alta, vidro fechado), o lenço está em volta de binóculos que miram justamente as mãos unidas atrás do corpo, os passos curtos, os olhos que espreitam cada movimento que supõe na rua. Aleixo vê além dessa figura outra com um xale volumoso que assovia na calçada oposta, cara de prestes a atravessar a rua. Qualquer direção serve. Por isso toma uma de que depois não se lembrará. Uma direção em que tem que pisar as flores de um canteiro para chegar ao outro lado da praça. O vai e vem do balanço está mais forte do que se fosse provocado só pelo vento, como se alguém estivesse brincando no parquinho daquela praça segundos antes do Aleixo reparar.

Atônito ainda não, nem ao ver a mulher da calçada oposta abrir uma lacuna no lenço para posicionar um celular em frente à boca. O basta ajustar a telha do fuzil estranhamente não reverbera. A fresta por onde a outra mulher o observava – no que deve ser um terceiro andar – se extingue a um fechar de cortinas. O passo de intuí-la em alguma esquina o leva a considerar alguma rua movimentada onde pudesse se esconder. Considerou um porão - a casa do irmão fica ali perto - concluiu que casas não eram mais seguras, desde que rastreáveis pelo número do telefone. Considerou uma guarita da polícia, que ninguém além de pombos usava mais. Considerou um segundo parquinho: apoiados em cujas gangorras adolescentes estariam fumando maconha. Considerou os fundos do prédio que abrigava uma igreja evangélica. Precisava se esconder de uma voz que ouviu vir de dentro da cabeça vazia e considerou uma das rotas de fuga, uma que contava com que alambrado esburacado que cercava um campinho de futebol não tivesse sido trocado. Um lugar sem postes. Suspirou de alívio por não escutar eco de salto alto no concreto. Quem saberá se a mulher previu ou não que ele tentaria fugir justo naquela noite e inclusive adivinhou o atalho por que o Aleixo enveredaria se não fosse o tiro. Um tiro em algum lugar. Um tiro que sempre pôde ser fogos de artifício ininterruptos. Um homem evidentemente manteve distância ao tirar o chapéu em cumprimento. Saltos tique taque tique e xales esvoaçarem em esquinas segundos antes dele alcançá-los. Mais um estrondo, os vultos que divisou delineados contra algumas luzes da janela todos sugeriam os óculos e as mãos meticulosamente finas. Mãos de suturar com a facilidade do crochê, que ela tinha ar de abominar. Ela esteve em todas as janelas quando ele planejou fugir. Acabou não fugindo mesmo. E mesmo se esqueceu de recolher o seu braço; que em um segundo estava regular, no segundo seguinte ameaçava despregar-se do ombro, crivado de balas. Sufocou a dor em um grito lancinante. Lancinante mas sempre olhando em torno por imaginar que ela ria da sua decrepitude. Deixou lá os pedaços de carne que os tiros arrancaram, tomou uma pílula fora de hora. Perdido, talvez morasse na direção oposta, retomou uma caminhada que era errática desde o princípio. Ninguém reclamou do barulho do grito ou do tiro. A mulher o cercara há tempos; à espreita em cada vitrine e cada janela, anotava tudo o que poderia vir a ser útil, quem sabe oportunamente o chantagearia. Aleixo contorceu-se sem sair do lugar, quase tombou mas segurou o passo como pôde. 

Quer ajuda? – o batom borrado e algumas olheiras indicavam que talvez fosse tarde da noite até para a pessoa.

Onde eu posso conseguir um lugar para dormir aqui por perto? – Aleixo só sente a boca abrir, a dor não permite que ele tenha a remota noção do que está dizendo – estou com muito sono e preciso descansar.

Tem um hotelzinho na próxima travessa desta rua, – a dor tampouco permite escutar o que o travesti diz, se resigna a contemplar a boca dele abrir e fechar – quer que eu te leve? –Aleixo vira de costas e continua a caminhar, se escorando nas paredes sem responder. O homem falseia a voz antes de largá-lo lá. Se despede fanho e se afastando. Sem perceber que cambaleia pela perda do sangue, Aleixo atendeu a um orelhão, que murmurou numa voz que ele inferiu alterada por um lenço em frente à boca para sair guturalmente. Temos que abrir um aceiro de pelo menos duzentos metros de cada lado da estrada para que eles não nos atirem em nós. Aleixo resignado a sua perícia em guerrilhas adquirida ao longo da noite, surpreendeu um risinho abafado ao fim da ligação que teve certeza que era dela. Pensou rápido, antes que desligassem na sua cara, mandou o interlocutor à merda e arremessou o bocal contra o telefone. Um homem que dormia sob um papelão ergueu a cabeça procurando por quem fazia tanto barulho àquela hora. Camisa ensopada, o Aleixo arriscou uns passos que logo tiveram de ser amparados por um banco. Quando não agüentou mais passou de sentar-se a deitar. Do braço pendurado no corpo por tiras finas de carne jorrava ainda, enquanto Aleixo se esforçava a manter os olhos abertos para qualquer abordagem da mulher. Eventualmente dormiu; o assento do banco ser estreito só permite apoiar o corpo quando deitado: o braço fica pendurado para fora, meio que balançando pelo vento. Um ganido estridente fendendo a noite fez pessoas vir às janelas ver o que acontecera. Um cachorro tomou um tapa no focinho por se aproximar para lamber a ferida no braço do Aleixo. Em cada cabeça assomada ele reconheceu não só a curiosidade dela por ele, mas também o jeito cirúrgico, de gestos contidos. Uma sirene ao fundo, um barulho de corpo denso quebrando espalhafatoso a linha da água. Aleixo respira fundo várias vezes; tomando grandes fôlegos, quer se manter no estado que a dor o convida a abandonar, consciente, acordado.

É provável que ficasse atônito ao ver finalmente por entre os pés a mulher surgir vinda em silêncio do final da rua e sentar na ponta do banco, perguntando sobre sua saúde sem sombra de malícia no rosto. Oferecer uma ajuda que ele recusa refreando-se de desmaiar. Debater-se, o atrito da luta corporal não causar ruído. Quando se render, ela sorrir: vasculha a bolsa. A mulher o descalçar para massagear-lhe os pés. Murmurar uma canção que ou é só de vogais ou está cantarolando. Despojado das botinas impiedosas, Aleixo – para não dizer que acata o aconchego que a mulher impõe – apenas fechar os olhos.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O reverso percorrido do trajeto*

Talvez ela mesmo tenha se convertido em poeira, Mia Couto

O disfarce da tosse discreta é a manga da camisa e um risinho para informar aos passantes que a saúde está bem. Gestos pouco abrangentes, sentado. Um caixote de frutas, madeira emborcada sobre os padrões das pedras revestimento. Cego de propósito a um sol diagonal incidindo na lâmina de uma marquise. Pedras pretas, brancas e roxas se entrelaçam num abstrato que Jota insistia em decifrar desde que pede dinheiro ali, há dez anos. O rosto apertado de concentração. A cabeça não move: do alto do corpo sentado no caixote, rastreia com os olhos: ora esse traçado da calçada, ora umas pernas que já iam longe quando ele acabava de delinear, ora o sinuoso trajeto de um veículo no asfalto em frente. O limpo do céu era bonito mesmo que fora do campo de visão; não estava do jeito que o Jota gosta. Mas já convidava ao bom humor; sem nuvens, até mendigar fica mais agradável. Uma mão envolvendo o buraco no algodão de uma calça, à altura do joelho; costas curvadas, a barba que cresce ao redor de um sorriso desabrido. As rugas da outra mão, cuja palma virada para cima: linhas encobertas por uma ou outra moeda que os dedos semi-tampando deixam entrever. Nunca em voz alta, as moedas caem em sua mão sem tilintar e justo por não pedir é que a sexta-feira demora mais a chegar. A barba entrecerra a expressão de. Ao lado de uma pilha de discos de vinil, cujo vendedor dormia longos períodos e acordava resmungando de receio de terem levado a mercadoria toda, a mão estendida enrugada concorre com a voz alta ofertando raridades da época áurea do bolachão, os bons tempos da música de verdade. O chão trepida à passagem de um ônibus, que sufoca os apelos dos dois. O do Jota é o silêncio; a mão em concha do braço estendido é o que há pra dizer, mas as pessoas não sabem que ele faz isso sem precisar. Não que ele tenha dinheiro, não que ele precise. A pessoa mais calma da cidade; se levanta e vai à banca comprar algumas balas de hortelã que são sua compulsão depois de ter parado de fumar, volta semelhante a um desses cachorros que sempre acaricia, olha ao redor antes de sentar e começa a pedir.  O cara dos discos coça um canto do rosto esquivando-se do desejo fugidio de que um menino que passa correndo em frente a ele caia e abra a cabeça. A mãe grita de longe para recuperá-lo, retoma a mão do menino e se detém diante dos discos com algum interesse de mostrá-los a ele: que só puxa o braço da mãe, querendo sair em disparada de novo. A mulher pergunta por Lupicínio Rodrigues e Lamartine Babo, dá conversa por encerrada depois de ouvir os preços. O menino quer verificar se Jota está vivo ou é uma estátua: cutuca o braço estendido e derruba as poucas moedas aninhadas na palma. Aproveitando a curiosidade do menino, Jota agarra seu ombro e dá um grito ao qual o susto do menino responde espavorido. A mãe ri enquanto tem sua perna abraçada pelo filho lívido e atravessa a rua. O vendedor enrola a ponta dos bigodes e para abafar o riso culpa seu vizinho de calçada pela perda da venda. Quinta-feira. Um lapso de deixar de pedir: a mão escava o pano de um bolso só pelo prazer de sentir que o dinheiro já está lá. Não só o da passagem de ônibus, o do café também; as coisas no aeroporto custam caro. Não que ele precise das coisas do aeroporto que não são os aviões em suas trajetórias de abelha beijar uma flor e se retrair trôpega, mal conseguindo alçar vôo se não for graças ao nariz. O dinheiro já dá pra ir, ficar lá sentado admirando através das grandes vidraças que dão para o pátio em que manobram e voltar. Jota resolve finalizar o dia por ali que amanhã é cedo. Se despede do vendedor, de quem bem ou mal é amigo, com a mão direita; a esquerda já depositou no bolso as moedas catadas do chão e agora segura o caixote de frutas por uma alça. Afasta-se fitando os próprios pés. Mais ou menos quatro horas da tarde, o que João precisa ir à esquina do quarteirão e olhar no termômetro erigido numa rua transversal pra saber. O caminho é curto até a rua pouco frequentada e paralela a essa em que ele esconde os papelões e lençóis esparsos com que se cobre. E com que cobre retalhos de folhas soltas de National Geographic espalhadas, o jeito que ele encontrou de ninguém identificar a importância daquelas páginas de leitura noturna e roubá-las por maldade. Pirâmides no Camboja, avanços tecnológicos, ruínas romanas em que pessoas moram, o prédio mais alto do mundo, tribos incógnitas, populações soviéticas que as nuvens de radiação mal-formaram, ailuromancia: uma coleção que ele sonha que os aviões tornam possível. Antes de se deitar de vez, sem esquecer das recomendações maternas contra engasgos, chupa uma das balas que sobraram do dia. Posiciona o caixote onde não possam reparar na sua utilidade e escondido folheia páginas que já decorou. Uma vez não soube responder a um namorado antigo que lhe perguntou por que guardar dinheiro para ir ao aeroporto às sextas e não guardar dinheiro para comprar revistas novas; apenas se ergueu perplexo de onde se deitavam, recolheu os cacos da revista e vagou à noite; não sem omitir ao homem que ou fosse embora ou ele iria. Foi um bom namorado, que Jota às gostava de imaginar enxerido. Opina que as pessoas em geral são. Rua estreita e mal-iluminada só permite ao Jota ler até que escureça; por não querer mudar do seu lugar silencioso e deserto, por misantropia, fica confinado a repassar as viagens mirabolantes de repórteres aventureiros só até o sol abandonar a fresta que os dois prédios altos entre os quais dorme deixam. Tira a camisa e guarda no caixote, a noite quente permite que ele vá mais limpo ao compromisso semanal do dia seguinte.


Jota é mais rigoroso com o horário do ônibus que o próprio motorista. Tem que ser cedo, almoçar é impossível no aeroporto: o dinheiro dá, sobra, mas não é tanta folga assim. O cobrador é novo, por isso o olhar torto que o antigo substituíra lá pela terceira quarta viagem por alguma conversa. Os bancos saem da rodoviária todos misteriosamente sempre ocupados e vão esvaziando ao longo do percurso. Mas Jota sempre prefere ir em pé e de olhos fechados por não querer estragar logo ali no início as surpresas que grandes vidraças escondem. Se alguém pede licença ou puxa assunto, ele até abre os olhos, mas exclusivamente para cravá-los nos do interlocutor, o que assusta algumas pessoas mais que a barba e as roupas e os papéis amarfanhados sob o puído do algodão da manga da camisa juntos. O desvio das pessoas desbasta uma clareira ao redor de Jota, ainda mais se ele levar o pão esfarelento que o padeiro sempre reserva, a um preço mais baixo. Na vez em que chamou o namorado, se sentarem ao fundo do ônibus, envoltos apenas em lataria opaca e prolongarem os beijos para que Jota não precisasse antecipar o céu arregaçou uma clareira ainda maior, cercada por xingamentos e agressões que terminaram por expulsá-los. Fizeram o resto do caminho a pé, com Jota atento às formas na calçada para evitar o céu que aquela sexta-feira nublada lhe vedaria. Tinha um assovio combinado com cobrador antigo para quando chegassem à parada do aeroporto. Desta vez abre uma fresta mínima entre as pálpebras, enxerga um descampado entrecortado por fios de alta tensão, concessionárias de veículos e depois de um estacionamento quase sem-fim vê uma fileira de taxis e os pés automaticamente se encaminham à porta traseira. No guichê de cobrança do estacionamento, na florista, no balcão de aluguel de carros, na farmácia, nos balcões de companhias aéreas: as pessoas que atendem o reconhecem e embora nem todas cumprimentem Jota fica satisfeito com os cumprimentos que a sua assiduidade de décadas angaria até hoje. Presenciou reformas no saguão e trocas de elevador. Mas o céu manchado e o sol eram assíduos e intactos. A escada rolante reteve uma mancha que ninguém se lembrou de tirar: durante um protesto dos operadores de vôo, policiais empurraram alguém para formar uma linha que a marcha dos revoltados não pudesse ultrapassar. A pessoa tropeçou nas que desviam da porrada dos policiais e caiu da escada: ao aterrissar no andar de baixo os membros formavam ângulos imprevistos e uma fratura expôs uma mancha que se deixou instalar em uma junta dos degraus que as pessoas não limpam. Mancha em que Jota sempre identifica um rosto ao subir ao mezanino. Escolhe qualquer cafeteria: os cafés têm sempre o mesmo gosto de água suja e ele vem por causa das janelas. Não se importa com o ruído que as moedas que reuniu em saco plástico fazem ao chocarem contra o mármore redondo do tampo da mesinha. Ritualístico, conta os centavos sem esconder que já conhece o resultado. Pede o café (americano, curto) e algumas balas de hortelã. Ritualisticamente, sentado e de costas toma a xícara em goles de saborear a vitória semanal. E os passos com que aproxima seu corpo, cabeça baixa, do janelão; emoldurando os aviões com frisos brancos são passos de recém-nascido trêmulo com que vai sorvendo a paisagem áspera do concreto, aqui uma escada desconexa entre uma listra amarela no chão e uma nuvem a que Jota atribui um formato que logo identifica como tendo sido sugerido por um objeto à direita da escada: uma pessoa com protetores de ouvido que carregava sinalizadores laranja. E então chega mais perto do parapeito tubular, a curiosidade descortina um horizonte que não é de edifícios; na hora da semana em que Jota aceita o céu. Aceita tudo de uma vez. O namorado não entendeu essa aceitação e torceu-lhe o braço e trazendo-o mais pra perto, quase cuspindo o rosto em dúvida dos motivos daquilo, vocifera de ciúmes. Ao tentar e conseguir reduzi-lo ao frio do chão do aeroporto e submetê-lo a uma sessão de chutes para que Jota, abandonado lá emborcado em posição fetal, aprendesse. Jota tem um sorriso no canto da boca porque o gosto que vem ao olhar o céu é do sangue, posteriormente limpo, com que manchou o mezanino. Gosto de sangue e arrepio de vastidão. As mãos extraem filas quilométricas de balas de hortelã dos bolsos. Aferrado ao balaústre branco que impede os suicidas de se atirar sob as rodas de um desses carrinhos que transportam malas para os terminais ou comida para os aviões, ele afasta os olhos da terra para pousá-los nas nuvens que o namorado teve problemas em identificar. Decide ir embora e vai; conforme cruza o corredor rumo à parada, responde a uma onda de mãos em despedida baixando os olhos, restringindo-os ao chão.


E se afasta sob um poente tortuoso a que vira as costas, protegido pela lataria do ônibus.


*mais um conto para o qual a linda Ferdi Mendonça contribuiu com uma foto.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Que te faremos nós, para que o mar se nos acalme?


Let the elevators creak and speak, ascending and descending in awe.
Allen Ginsberg

Quando com um estrépito curto de metal raspando o elevador estaca, os dois meninos dão atenção a uma lâmpada que se soltou de alguma presilha no teto e oscila enquanto as outras apagaram no impacto. Balançando como se enfocasse uma região do elevador de cada vez com um halo esmaecido. A oscilação é rápida e permite apenas por frações de segundos, de relance, o menino mais velho enxergar o menino mais alto acertar a posição dos óculos no rosto e resignado sentar-se no mármore tornado frio.
Já aconteceu com você isso antes?
Hoje quase passei daquela fase que você falou.
Qual?
A fase que cara encontra a porta azul.
E aí?
E aí que na verdade ele tem que arrancar a grade de um exaustor e entrar por ali. Já aconteceu sim comigo, mas sempre volta rápido.
Parece que o elevador balança de um lado pro outro com a gente dentro.
A culpa é sua. Você e suas apostas.
O menino mais velho se senta ao lado do amigo e se refreia em contar que quase foi descoberto pelo pai graças ao rangido da porta de casa. O horário que combinaram talvez fosse cedo ou tarde demais, mas isso nenhum dos dois admitiria. Uma questão extrapolando coragem e dos dois o que quase fingiu doença à hora de sair foi o menino mais alto. O que passou a tarde juntando a comida de que talvez precisassem para sobreviver à aposta foi o menino mais velho, enquanto o mais alto jogava videogame listando lugares imaginativos para esconder as embalagens das barrinhas de cereal que devorava seguidamente e não queria que a mãe descobrisse. Silenciados ânimos apenas iluminados pela luz do videogame portátil que o menino mais alto tira do bolso. A luz caleidoscópica apagou há exatos minutos.

Do outro lado, mais para o fim da rua, no único lugar da cidade em que ainda sobraram casa, o menino mais novo já resolveu participar da aposta, só para provar ao menino mais velho que ela é impossível de realizar. Lê uma revista roubada do quarto do irmão e espera dar a hora de correr rua acima até a entrada do prédio, em que os dois amigos são vizinhos; e com a impressão de serem ele e a revista bastante mais adultos, decide que pode fazê-los esperar um pouco. O ventilador de teto começa a tremer como se acometido de um vento súbito. Sutil, passa despercebido do menino, concentrado no prazer clandestino de ler O Escapista antes de sair para a noite, quando deveria estar dormindo. Levanta da cama e anota rapidamente uma frase de efeito d’O Escapista em um caderno aberto, sobre uma mesa. Bebe água sem notar que segundos antes de erguer o copo, na superfície líquida formavam-se círculos concêntricos. Seja lá quem propôs a aposta, aquela frase dá ao menino mais novo a certeza de que não a concretizarão. A certeza de que quando a propuseram só estavam eufóricos por faltar dois dias para o início das férias. O mês dera à luz muitas cerejeiras a cobrir com seus dedos de rosa a avenida (estreita, quase alameda) com um lençol de pétalas, a discussão sem vencedor. Os três meninos compartilham tudo, mas um deles tem a ilusão de mandar no grupo. Revolta tácita e consentida. O menino mais velho sempre aprontava tudo sem consultar ninguém e depois impunha planos descabelados que se davam certo era por pura sorte. Pula pela janela de seu quarto e no gramado do quintal percebe que esqueceu a mochila; volta. Ao sair de casa, a um canto da boca do menino mais novo, um sorrisinho disfarçar escárnio é a consciência de que desta vez o auto-denominado chefe dos três amigos está errado em seus desígnios.

O elevador com um ronco e um estremecimento mais que perceptível volta a operar, o que não faz o menino mais velho retomar conversa, ou o menino mais alto desviar os olhos da tela brilhante e dos bipes. Só quando chegam ao térreo e se encaram, nos olhares cruzados a pergunta abafada pelo medo de um e pela vontade do outro de levar a aposta a um fim. Estamos combinados? O menino mais alto desliga o jogo sem salvar e esboça uma tosse que talvez o livrasse dos planos mirabolantemente falhos do menino mais velho para esta noite. E antes de atravessarem a moldura da porta de vidro que dava acesso à rua um tapa amigável nas costas encoraja a algo que quis evitar mas não tem jeito mais. O menino mais novo ausente ainda é bom porque dá tempo de verificarem o que há de errado com aquela por que não quer fechar. Com muito cuidado para não bater com força excessiva, um segura a maçaneta e o outro verifica se sobra algo entre a por e a moldura, ao que parece as dobradiças empenaram. Ainda tentam resolver isso sem ser desmascarados, ao acordar pessoas do prédio, e o menino mais novo assovia lá do fundo da rua. Um assovio específico, padrão conhecido só por eles, que denuncia tê-los avistado.

Sobe a rua e os carros escasseiam: apesar de ser só dez e vinte da noite, aquela parte da cidade não é rota de muitos carros, um bairro de pedestres, cujo acesso ao resto da cidade é feito por uma ruela estreita como aquela não é o lugar mais convidativo para roncos de motores pertubarem a noite. E de longe o menino mais novo só vê os dois atracados à porta, em silêncio como uma cena que esqueceram de dublarcumprimentam os três, reticentes dois em relação ao menino mais velho, cujo olhar pré-triunfante ofende e encoraja. Toques de palma da mão e, antes que alguém se assome a uma das janelas e os descubra, começam a caminhada até a árvore. Afastando-se, mas na mesma direção, já trocam as primeiras palavras mas ainda a três metros mais ou menos um dos outros dois desconfiados – a porta rangida do prédio deixada aberta -,
Eu tenho coragem
Duvido
Vocês não ouviram o Getúlio dizer que nunca ninguém conseguiu?
Eu consigo
Não consegue
Vocês dizem isso porque se cagam de medo de me acompanhar
E você já viu a altura da árvore por acaso?
Vi, e daí? Quem não viu?
Não dá pra fazer
Não é medo, é só que nem você nem qualquer um consegue
Impossível, e tenho dito
Cala a boca - presenciam o céu noturno, previamente tornado claro pela lua e por postes, escurecer com a densidade e extensão da revoada de pássaros que, subitamente surgida, a altura bem baixa; se desloca – as barrigas negras dos pássaros roçando o teto de alguns prédios - no rumo das casas do fim da rua, cujos fundos davam para uns barrancos lodaçais, limites da cidade a sudoeste. Uma maré de pássaros seguida de perto por uma correnteza de gatos famintos, que se interna portões das casas adentro, de olho no mar de comida que escurecia o céu imediatamente acima. Morreriam alguns gatos (miados raivosos e nenhum pio) que não sejam incólumes às quedas dos barrancos altos: pisoteados por outros gatos que também queriam comida. Os três garotos se entreolham, a noite é aquela, antes que mais algum acontecimento. Sem mais palavras, se aproximam de uma vez; agora como se com os toques, as palavras recentes juram que estão ali, às dez e pouco,  para performar o plano que o menino mais velho traçou.

            Após a revoada a lua se mantém intacta, na forma de uma tachinha reluzindo a uma esquina do céu. Nuvens que se agrupam a uma outra esquina decidem dar vazão a uma chuva fina, que passa a fustigar as cabeças desprotegidas.

As pessoas que vem pela calçada na direção contrária tem ar de apressadas. São raras. Mais raras ainda as que calmamente tomam seu tempo com se assustar pelo recém-absurdo do céu escurecido de repente por aves que provavelmente fugiam de alguma coisa. Caminhando sem pressas mas evitando falar alto como sempre, concentrados na missão que vem daí a uns dez minutos; os três meninos sincronizam relógios por simples motivo de terem visto isso ser feito num filme. Pergunta-se ao menino mais novo se ele trouxe corda: os primeiros galhos da árvore são altos demais, não simplesmente alcançáveis pelos dedos. E assim que chegam, antes de pularem a cerca de arame liso que separa da rua, engolem em seco. Assim que chegam à extensão de terra batida que baldia espaça dois edifícios. No meio, bem no centro da aridez agora úmida que o vento levantaria em forma de pó, se erige rigorosamente vertical a tal árvore; os meninos enxergam bem um trapo de pano azul tremulando amarrado a um dos galhos mais altos.

Engolem em seco ao intuir a árvore toda de uma vez. Embora molhem-se cada vez mais – a chuva engrossa -, as intenções não mudaram: um quer só escalá-la e tomar o pano azul que alguém esqueceu; o outro quer só provar que não é possível, tentando árduo e falhando por culpa da gravidade; enquanto o outro quer só ser tomado por uma gripe e desmaiar nesse instante. Os contornos entretanto estão embaçados, escassez de iluminação.

A noite evita que a árvore os amedronte.

O menino mais alto estaca para medi-la – os olhos baixos mal divisam a fronteira entre o tronco e o início da copa, de tão alta - ; o menino mais novo se abaixa alcançando duas ou três britas com que tenta alvejar alguns pássaros (brancos, pernas longilíneas) que ciscam o terreno obrigam o menino mais velho a parar também e, costas dadas à frondosa árvore que não quer encarar agora, finge atenção com o tráfego mais do que escasso de onze da noite em uma avenida esquecida.

Infiltram-se por entre as linhas do arame da cerca.

Dentro do terreno conferenciam abrigados da chuva pelo modo como a árvore se espalhava horizontal sobre eles. Se escondem atrás do tronco descomunal para evitar ser vistos por um passante eventual. O menino mais novo vai ser o primeiro a subir porque é mais leve. Escalará a árvore e amarrará a corda ao galho mais baixo e só depois disso os outros dois subirão. E fora do campo de visão dos outros dois, bastante mais alto e sem ser atrapalhado por folhas ainda, o menino mais novo senta-se em um galho, vê a cidade se espraiar até onde não conseguia mais delinear nada, tudo eram luzes. Amarra a corda a um galho grosso, verifica a qualidade do nó e grita que vai na frente até onde dá para subir dali. O menino mais velho sem ordenar o convence a ficar ali até que os dois subam a árvore e eles desamarrem e recolham a corda para não deixar vestígios. Espera os dois. E partir do momento em que se encaram, cada um dos outros dois empoleirado a um galho próximo do menino mais novo, e assentem que prosseguirão; estabelecem um pacto de sigilo absoluto de ações e vozes. Orientar-se estando dentro da copa da árvore é o mais parecido possível a um labirinto. O escuro camufla os corredores possíveis e cada desvio é mortal. Os meninos se encaminham em fila indiana, tendo por única diretriz subir sempre. Tateiam galhos mais sólidos e não se deixam abalar quando um que prometeu ser ascendente começa a curvar perigosamente rumo ao solo. Sentem mais de um inseto percorrer-lhes o corpo e, sempre em silêncio, alternam quem segura a mochila, que eles imaginam pesar uns quinze quilos. Por duas vezes atingem o topo da árvore mas em lugares longes do pano, a água cega a vista do céu tanto quanto as folhas cegam o caminho. A aposta é pegar o pano e entregar ao Getúlio na manhã seguinte. Ele disse que tinha amarrado lá e só quem fosse homem suficiente devolveria. Labirinto silencioso em que a mão de um esbarrar no pé do outro provoca arrepios indizíveis.

Frio dentro da árvore, um frio que venta e seca os três meninos.

O menino mais alto levava a mochila nas costas. O menino mais velho tem a ligeira impressão de já ter sentido aquela exata bifurcação de um galho ramificar em um mais resistente que retorcia solitário para a esquerda e a um mais fininho que subia e se emaranhava entre alguns mais grossos. Os calibres dos galhos retidos ainda nos dedos. O menino mais novo ignora essa mesma impressão escolhendo, como fez da outra vez, o galho solitário. E os três começam a sentir através do grito do menino mais alto, que é atingido por uma fruta. Os dois outros  chiam para que se cale, o que não dura muito são silenciados pelo ruído de muitíssimas frutas chocando contra galhos. É o início. O que significa ser o início de os galhos chicotearem o ar, conforme a árvore à mercê do frêmito que a terra provoca ao se deslocar minusculamente para a esquerda e a direita – qual um joão-bobo – tenta adaptar-se à nova condição drapejando violentamente para os dois lados. Agarrados ao galho que os guia, os meninos sentem os tremores se intensificarem e só se preocupam em não ser atingidos na cabeça por algum fruto descolado de seu galho. Tentam atingir o tronco de onde o galho em que estavam partia, tendo abandonado o cuidado em silenciar para não serem descobertos. Aos gritos rastreiam a posição uns dos outros apenas para manter a fila indiana. O menino mais novo informar que perdeu o percurso e não lembra qual é o rumo do tronco da árvore assusta menos do que os solavancos que a árvore dá, como se estivesse prestes a decolar do chão a que as raízes primitivamente a prenderam.

Apenas se agarram querendo proteger-se do vento que castiga essa árvore indecisa sobre se tomba de uma vez ou se ainda há tempo de se erguer antes do fim. E assim como a árvore, resistem a se dobrar. Num último impulso, cada um por conta própria desiste do tronco da árvore e enlaça os braços ao galho mesmo em que se apoiavam. Os olhos fechados, as unhas ferindo a madeira a despeito da árvore pendular. Apesar de não se molhar ali dentro, sempre dá para ouvir o barulho que as gotas fazem ao acertar a copa da árvore, e um segundo antes de perceberem que acabou notam que as gotas se calaram por fim. Um grita de alívio, o outro pede que lhe passem a mochila para ele pegar alguma comida e o outro sorri antes de dizer que devem continuar.

Continuam apesar dos muitos tremores a que a árvore ainda os submeteriam. Só desistem quando ao pôr a cabeça para fora da copa da árvore pela terceira vez percebem que já é dia e que neste dia a cidade acordou devastada. Os vergalhões de concreto expostos tem a forma de mãos de náufragos saindo do mar para pedir ajuda. Não veem rachadura em nada, apenas recortes nem sempre retilíneos nas silhuetas do que se acostumaram a chamar de cidade. O que tinha mais de três andares não resistiu, do resto sobrou alguma janela, um móvel soterrado. E sair do labirinto é tão difícil quanto entrar. Agora a orientação era descendente e encontraram saídas falsas e corredores que davam a lugar nenhum. A urgência inclusive faz com que encontrassem o pano azul, amarrado à ponta de um galho que nitidamente os levaria ao térreo. O menino mais alto pergunta qual é o tamanho da corda e conseguem descer dando um salto arriscado: ao chegar ao fim da corda, um pulo pouco mais de três metros separa cada menino do solo arrasado. O terreno baldio está intacto. A árvore, meio inclinada para a esquerda. Os pássaros brancos sobrevoam ali perto.

Parece que uma baleia engoliu a cidade e que somos as coisas vivas no estômago dela
Eu falei que a gente conseguia
Cala a boca, cara
Conseguimos, não conseguimos?
Que sorte a nossa, hein
É melhor ir ver o que sobrou
Não tenho coragem, vai que os pais não estão lá
Quer ficar na dúvida?
Eu não
Vamos lá
Acho melhor não
Voto vencido, cara.

Cada passo dos meninos na cidade ecoam porque as coisas se cansaram de despencar uma sobre as outras e resolveram recolher-se, só há silêncio e os meninos preferem a visão do todo que tiveram lá da árvore, por isso vão tão desatentos aos detalhes. Por isso e por talvez já saber que se a rua deles já está em ruínas a partir dali, provavelmente não terá conservado as casas lá do final - quem dirá os prédios mais adiante. Andam só olhando para frente e ocasionalmente se desviam, trombam uns com os outros ou, se levam um pisão no pé, apenas mudam de direção. O menino mais novo corre na frente para desbravar. A cidade é seu horizonte limpo, com pássaros aqui e ali perscrutando possibilidades de comida. Só o que não lhes deixa ver isso de uma vez só são as enormes pilhas de pedaços esparsos de cimento e ferragens e argamassa e madeira e automóveis e asfalto e água que se acumulam em certos pontos; arremedos de civilização dificultando a vista. Até as faíscas não se animam ao esforço de produzir ruído, esse papel quem cumpre são só os passos e o movimento das pálpebras descrentes dos meninos. Gestos contidos e passos apressados. O lugar em que devia estar o prédio de dois dos meninos ser agora um buraco os fez precipitar uma piada sobre a rua estar banguela. O menino mais alto represa um soluço que não quer que os outros dois, impassíveis em choque, presenciem. Acabou privacidade, o que tentam esconder fica escancarado. Dormem todo este dia em um lugar confortável que encontram. À noite saem sob a lua que permanece tachinha a uma esquina do céu: sob esta iluminação indecisa escalam uns promontórios de ruínas até se dar conta de que sobrou pouco ali, nenhuma edificação a não ser uma casinha amarela sem telhado. O menino mais velho a frente do grupo, aproximam-se devagar: os desmoronamentos são iminentes, podem acontecer com qualquer coisa em qualquer lugar. Com um banquinho inverossímil em pé fixo do lado direito da porta azul. Um bloco cúbico que é uma ilha no mar de escombros. Pena que não conseguem arrombar a porta, que não dá pra entrar pelo tubo do exaustor.


*esse conto eu escrevi a partir da foto tirada 
pela Ferdi Mendonça, a quem só posso agradecer

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Velas brancas no lugar de negras.

I know the ways of pleasure, the sweet strains
George Herbert

Ontem pescamos de um jeito novo, eu sugeri que ao invés de espancarmos a superfície do rio com um galho grosso de madeira e esperarmos um peixe aparecer boiando em um lugar que não fosse fundo demais para irmos buscar, pegássemos um galho mais fino e palitássemos a água onde supostas bolhinhas aflorassem. O Robinson aprovou de cara, andava meio desanimado com comer carne porque o método antigo era muito pouco eficiente mas concordou. Só comendo cocos e folhas já estava ficando magrinho, e a esta altura não conseguia nem sair e coletar: minha responsabilidade fazer tudo, enquanto ele ficava na cabana, trançando a corda com que amarrará os troncos da jangada com que nos arrancará a todos aqui. Eu, ele e tenho a impressão de que planejou levar um crânio dos que encontrou na caverna como carranca para proteger a jangada. Crânio ou fêmur: o Robinson tem muito apego a esses dois, dorme com eles perto e com certeza acha que protegerão nossa fuga. 


Outro dia o meu amigo explorador intrépido rasgou o pé de fora a fora com um espinho, que não viu, em que pisou no meio da mata. Três dias de febre, tudo pro Robinson o traumatiza com três dias de febres lancinantemente tropicais. Só veio cura quando usou um metro da corda de fibra dele lá pra pendurar o crânio logo acima das folhas sobre as quais ele dorme. E sob a supervisão daquele que foi num passado remoto algo entre humano deformado e macaco se curou. Fugir fugir ninguém seriamente deseja. Uma das primeiras coisas que ele fabricou - antes mesmo do porrete com que afugenta cobras e extermina babuínos - foi uma rede; tanto é que quando primeiro espreitei sua sombra na praia, só vi uma perna igual à minha, mas sem pelos, pendurada de uma rede. 


O Robinson adora aqui, só não consegue mais ficar depois de ver a caverna tão clichê e que realmente existe. Quer que eu vá junto para me exibir na corte da rainha e eu nem sei se quero ir. E ele também não, fica atrasando a corda, desfiando à noite achando que eu não vejo. Preferir febre tropical a gripe soturna. O Robinson não tem medo de mosquitos, mas tem medo de encontrar o que veio procurar, sob o pretexto de ter naufragado pelos mares do sul. Tudo pretexto, até a caverna com a qual ele faz de conta que se horroriza. Um buraco na pele da montanha, um buraco que guarda um pântano na barriga, vagamente o incomoda contra um horizonte azul e areia branca que reflete seu sorrisão. Quem sabe ele não vê silhuetas de homens nanicos no canto dos olhos; homens cujos dentes apodrecerão fincados nas carnes de alguém que já foi lorde? Tudo pretexto, vir aqui e ir embora de mãos abanando. Ontem também ele me ensinou a jogar xadrez, com umas peças que improvisou com diversas frutas, jogadas fora às pressas assim que, atraindo insetos, começaram a feder. Hoje ele me esbravejou contra a frustração dele: embarcamos amanhã. Um labirinto por outro e estar atracado a si mesmo é nada mal para quem a fuga é o caminho.