quinta-feira, 22 de julho de 2010

Lotta Dead Birds.

A dor fisgou pela primeira vez ao envolver a alavanca de câmbio. Um tique nevrálgico sei lá o quê me impedindo de abrir e fechar a mão. Era a terceira curva já e, além do morro me impedir de saber se havia alguém mais a frente lá no final da curva, era meio crítico que eu reduzisse ali. Taxas elevadas de incidência de óbito, o jornal sempre xingava disso aquela região do percurso. As faixas de metal posicionadas a beira da estrada estarem comidas no ponto em que os carros derrapavam pela tangente daquela curva, era dizer o suficiente em relação à velocidade de que eu precisava naquele instante. Sem falar nos deslizamentos recorrentes. Abordei rápido demais; a Marta, mesmo dormindo, espremeu o assento entre os dedos e numa tempestade de começo de receio sonâmbulo murmurou meu nome. Um clique nos ossos, nos nervos ou nos músculos era a distância entre minha mão enovelar-se à bolinha da marcha e o fundo do penhasco; clique imperceptível como uma arma, mas melhor. No fim das contas, quem afinal se dignaria a procurar de novo os arredores fundos das sete curvas? O Departamento não se preocupa mais em substituir o metal roído - sai caro -, por isso não dava pra avaliar de acidentes novos por meio da conservação ou não dos sinais de trânsito da beira da estrada. Não bebo nem nada disso e mesmo assim, na câmera lenta de decidir às pressas, o céu deu toda a pinta de se encolher, resumido a um único ponto, de escape. Sem nuvens, a escuridão que meus faróis esgarçavam começava a depositar sua caspa sobre o capô. Desliguei os limpadores de para-brisa em prol do aquecedor. Aquelas palhetas dançantes na minha frente  embaçavam mais a visão que a neblina; talvez eu relevasse entrar rápido demais na curva porque a mão esquerda ainda funcionava, e eu precisava guiar o carro; fosse na velocidade que fosse, não dava pra perder pro penhasco a frente. No que o volante já estava ao máximo esterçado, minha mulher recém-acordou, abafando-se num grito arfante. Nem perguntou nada, só se agarrou ainda mais ao próprio banco e entre murmúrios alternava meu nome e uma oração aí. Desavisados nós seis. Os do carro, e o de fora: um pássaro que, fendendo o ar horizontal, atravessou com o bico o meu para-brisa. A força suficiente com que estilhaçou o vidro; a luz da lua se infiltrando qual leite pelas rachaduras recentes, enquanto preto de penas reluzentes se debatia ansiando por se libertar. Não liguei pro desespero absorto da Marta; ou era eu ou a curva. Pé suspenso a espera para pisar na embreagem a qualquer sinal dos dedos por enquanto inertes rastejar em direção à alavanca. Pé embaixo no acelerador porque a curva era em descida e o asfalto não ia tragar ninguém que eu carregava. Sei que é pouca a diferença, mas perder o controle estava fora de cogitação. O silêncio no carro ser absoluto - esfacelado às vezes por ronco de um dos meninos ou pelo flapflap eventual do pássaro, ainda vivo - se opunha aos caminhões atroando nas outras seis curvas, acima e abaixo de mim. O ziguezague que o Departamento quis tornar um pouco sádico e bastante incontornável, fugiu à minha atenção, o menino do meio chorava.
Querida, dá uma mamadeira pra ele - Não virei a cabeça, a ordem aflorou mecanicamente audível demais
Não quero dedê, papa, eu tô com medo - Marta esfregando os olhos incrédulos de quem acaba de acordar e se depara
Medo de quê, filho?
Dá um brinquedo pra ele, então - Virei a cabeça pra ver as lágrimas de crocodilo do menino querendo atenção e voltei rápido à atenção na pista antes que o ponto de escape passasse direto pelo carro
Reza pro papai do céu
O pássaro forçar a cabeça pra fora do vidro em que se prendera: sem resultado, o corpo continuava pendurado do pescoço dele
Não quero, eu quero descer
Cala a boca, filho
Não fala assim com o menino
Me dá a mão? - percorria e as vozes eram distantes e indistintas
Macedo, que que custa prestar atenção no que seu filho está pedindo?
Não me chama assim porra, já falei
Aguenta aí um pouquinho, o papai precisa se concentrar
Isso mesmo, calem a boca por favor, preciso me concentrar - desencargo de consciência: quase no fim, joguei pra trás um boneco que achei no painel do carro - bonitão e musculoso, só de sunga e equipamento de mergulho, devidamente batizado com o nome que veio na caixa,  Scubaduba - que o menino recolheu, choramingou ganindo por um tempo e depois se resignou a brincar dublando aventuras submarinas.
A neblina se solidificar dava às penas do pássaro um tom de orvalho, quase lúgubre em sua refração esmaecida, furta-cor.
Aquela era minha chance, mentalizei um filme em que o cara lá não conseguia fazer isso e ri dele por dentro. Ia corrigindo o trajeto das rodas bem de leve e quase lá - consegui mesmo aquela curva, com a mão direita travada e a cento e quarenta por hora - topamos adiante com um tronco que tinha tombado. Uma muralha que só vi quando já estava encima. Transversal à estrada, a nossa faixa obstruída pela copa da antiga árvore. Copa de muitos galhos entrando cada um de uma vez e em cada direção pelo outro lado do para-brisas e dos vidros da lateral direita. Derrapei - culpa de desviar da árvore, o veículo eu controlei -; um percurso diagonal curto antes do choque.
O airbag da Marta falhou em ser acionado. Mesmo na hora do impacto, ela não parou de rezar. Eu não vi passar o desfile do processo inteiro, a vi em um segundo, ela estava de mãos juntas, os lábios movendo rápido; no próximo um galho enorme já separara a cabeça do tronco. Um roxo na altura dos braços e um filete - A Marta sempre bastante discreta - de sangue escorria pelo branco da blusa sem mangas, do pescoço, singrava as costelas até vir manchar o banco; ao ver a poça comedida concluí que era grave, não tinha volta aquele transbordamento.
Dos meninos, o que ficou melhor parado na situação toda foi justo o que eu não consegui salvar; o que ficou encolhido, perninhas encima do banco, abraçando o boneco que eu atirei. Suponho que essa posição refugiada dele foi preservada depois da segunda batida. O menino da esquerda eu tirei do carro - a porta emperrada  pelo acidente sem me deixar socorrer com a urgência que me governava - e lancei num impulso ao acostamento, onde, ralado, ficou bem, embora comigo. O peito do menino da direita do banco um galho atingiu e desacordado talvez fosse insensível ao carro que a toda também venceu a curva para se esborrachar ali. Sim, duas ferragens embrenhadas na madeira. Abandonei lá, não antes de olhar uma fresta intacta do carro e ver o menino lá - se formou um tipo de esconderijo - abraçando os joelhos, meio que embalando a si próprio, queria um sono já que não dava pra sair de lá e acordar em algum lugar a que os pés-de-pato do boneco conduziriam. Eu - obviamente - consegui sair a tempo de evitar a explosão das carrocerias; nem o frio do asfalto conseguiu acalmar os ânimos do combustível que vazava dos dois tanques escancarados, e aí houve faísca; bem, o resto vocês sabem ou adivinham. Eu já longe, eu e um menino. Venci, bem ou mal; a custo de quantas baixas é hipócrita perguntar.


Pela fresta intacta também enxerguei que o pássaro ainda batia asas, fincado, quando virei as costas pro ocorrido e as lágrimas do meu filho se misturaram à poeira no asfalto.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A voz hasteada de outrem.

Lembro uma vez em que
 meu pai tentou falar comigo a respeito daquela caixa. 
Amílcar Bettega

João lustra sem nervosismo aquela pela décima quarta vez naquele dia. Os filmes pecam nisso, a lente de aumento cilíndrica presa ao crânio por um elástico seria afetação de iniciante: bastam dedos firmemente delicados, um pano limpo e a solução de níquel e prata que ele prepara no fogareiro do quarto do fundos, tornado oficina. Abre com cuidado o faqueiro de interior de veludo e com o látex e a precisão cirúrgicos de uma luva segura o dobrão português; o primeiro da coleção, aquele cujo valor reside não no preço de mercado, mas na carga sentimental que aquelas quase dez gramas de latão ordinário embutiam em algum lugar. A ordem reluzentemente cronólogica das moedas reflete a satisfação de João em um mosaico. Quase quarenta círculos a refletir o rosto paciente. Fecha um dos olhos para enxergar melhor - isso não é afetação, é profissionalismo amador - aproxima e se admira com a efígie de João V ainda estar bem delineada contra o azinhavre do resto da superfície; de contornos roídos, a moeda conserva só o aspecto de pertencer há tempo demais às mãos do colecionador.

As tardes na chácara da avó, logo aquela que disciplinara na mãe a rigidez polida do tratamento com crianças parente e agora não, só sorria ao ver o netinho querido subir em árvores e o punha no colo a contar histórias de tesouros sepultados pela areia do fundo do oceano, guardados por tritões de poucos amigos. As tardes ensolaradas de perseguir galinhas com gritos em férias que o faziam saltitar por excesso de não ter com que se preocupar o tornaram livre para achar o baú sepultado num fundo falso dos vincos na madeira avermelhada do oratório do quarto da avó. Único cômodo vedado às mãozinhas ávidas do neto único, última fronteira do desbravamento que a avó incentivou, infância adentro. Se esgueirou. Uma divisa que João cruzou ao se esconder sob os rangidos matinais dos bocejos da cama, respirava pesado de ansiedade por que a avó fosse repôr o alpiste dos periquitos. Aos pés que se queriam calados, a madeira respondeu com grunhidos que denunciavam a trajetória, curta angústia entre a cama e oratório que abriu com o desdém de quem creu já ter conseguido. Ágil sob a estátua de santo, de olhos bem apertados para dar sorte, apenas enfiou a mão para dentro das portas e o toque frio daquilo pequeno que recolhe entre os dedos dá pressa. 

A avó o surpreendeu no corredor esbaforido e nada indagou: afável por trás dos óculos. O dobrão foi a primeira moeda da coleção, descobriu no quintal vasto o desejo do peso de tatear de novo o quarto e não voltou.

As bordas do metal retiveram em alguns pontos o trabalhado das listras; no verso à caravela faltam uma vela e parte do casco, mas tudo bem, já não estavam lá na manhã em que tremeu durante o café de medo que a avó desse pela falta da moeda. Ela nunca contara algo sobre aquele tesouro durante as sessões de histórias em seu colo macio indo e vindo ao sabor da maré da cadeira de balanço, e a família não foi lá tão rica como para ficar empoçando dinheiro sob colchões e oratório, mesmo assim a mão no bolso apertando firme o que descobrira havia uns minutos em seu quarto ser uma moeda velha, dava a sensação de sorte de ter aquela avó, a quem não tinha impressão de estar roubando. A impressão era a de ser um cavaleiro das histórias dela, alguém bonito e valente.

Não sem fastio ignora um telefone que berra. Cogita usar o algodão com que finaliza o tratamento das suas preciosidades para tampar os ouvidos, sempre é alguém querendo vender algo e quase sempre não sabem seu nome sequer: o nomeiam senhor, para qualquer eventualidade. Hoje, quem sabe seu nome - à força de repetição - são só as moedas. Vindos de fora daquela oficina tornada uma concha: refúgio e memória, João só obtém incômodos. E a ligação para cancelar o telefone só traria mais aborrecimento. O dobrão cheira como as histórias que cheiram como a avó, que descobriu o roubo. Já ensinado a ser portar direito à mesa se denunciou; os farelos de biscoito aderidos à mancha de café derrubado na toalha. E a princípio, o rosto de contrariedade daquela que não sabia como agir frente a um neto querido que até ali não precisara de dinheiro optou por dar-lhe uma palmada estrategicamente mais sonora que dolorosa e depois consolo. A confissão de que em um dia que em breve estaria às portas daquela chácara todas as moedas, não muitas, seriam de João, que sorriu contido à simpatia da avó: tudo bem que não devolvesse a moedinha, só tinha um valor que não subtrairia muito ao baú.

Depois de muito tempo só com aquela, logo após começar a juntar de verdade, João detestava conversar com suas moedas: elas retrucavam mal, força do hábito de passar de bolso em bolso sem serem consultadas para nada. Acostumou-se a um palavrório que, mais que arrogante, encobria docilidade temerosa por trás da secura.

Ao escutar baterem à porta, jura que um dia ainda isola acusticamente a oficina. Mais trabalho cancelar a porta que a linha de telefone: pousa o seu quinhão de história no almofadado ao lado das outras moedas, perfiladas, em posição de sentido para qualquer emergência e vai atender a contra-gosto, bufando por dentro, sem deixar que os olhos dos quadros no corredor percebam. Educação acima de tudo. Avança lentamente. Afivela o cinto felpudo do roupão puído para cobrir sua miséria de pelos no peito, liga a torneira de um lavabo que fica à direita no corredor, lava as mãos: só quer se livrar dos resquícios metálicos da torneira e das moedas. Ajeita a moldura de um espelho que julga torto, espanando do aço um pó imperceptível. Ao pentear o cabelo com os dedos, rapidamente, o sente oleoso do esforço concentrado de até agora há pouco. Destranca a porta para um pregador religioso, cuja cabeça se movendo para cima e para baixo avalia se aquela figura emoldurada pela madeira recém-aberta é digno de comprar sua salvação por meio de doar dinheiro, comprar bíblias.

A sua primeira moeda que o convenceu. O perdão da avó pela moeda roubada à vista do santo incluíra recolher as migalhas que deixara cair, o que queria dizer que teria de se abaixar e no quarto minúsculo (teto de madeira, paredes de toalha branca de mesa) que era o vão sob a mesa da sala de jantar catar o farelo que seu nervosismo deixara escorrer por entre os dedos. Foi no exíguo desse claustro que a moeda se desvencilhou do bolso e tilintou ao cair no chão; ao recolhê-la, ouviu um nítido pedido de que não a retornasse ao baú em nenhuma circunstância, que a tratasse bem porque traria sorte. O susto da voz desconhecida metálica estridente fez João levantar de uma vez, bater a cabeça no tampo da mesa; sobressaltando a avó, terminando de derrubar os utensílios que ela depois de um tempo e esforço recompusera a seus postos.

Por cima da ombreira casposa do terno preto do homem com expressão de cérebro lavado à sua frente, João viu um pássaro planar no corredor, ia descendo na diagonal como se caçasse um verme de rodapé, mas João não acompanhou sua trajetória por muito tempo; só o tempo de esbarrar com o desconcerto nos olhos do pregador, que revira os bolsos sem olhar.

- O senhor conhece a palavra de deus? Sabia que ele morreu para nos salvar?

- Você vai me desculpar, mas eu estou muito ocupado agora.

- É só um minuto - alcança a bíblia que João toma nas mãos com quase nojo -, que pode custar sua salvação.

- Não me interessa, obrigado, católico.

- Quer me convidar a um café, para conversarmos melhor?

- Não me interessa, obrigado.

Fazer menção de fechar a porta educadamente leva o homem, que não dera o nome, a travar a porta com o pé violento, entrar no corredor

- permita-me a intromissão - sob gestos aterrorizados que João fazia por causa da lama em seus sapatos. Apoiando a bíblia no aparador de madeira - primeiro móvel de quem entra no apartamento -, começa a vasculhar este móvel a partir das gavetas, como se lembrasse da posição dos objetos que buscava. Com a cabeça para fora, olhos a um lado e outro do corredor, João vê no vão que dá para as escadas dois homens de braços cruzados conversando audível em uma língua desconhecida. Sem se decidir por fugir ou interpelar ou o homem que invadiu, ou os homens a espera; os passos largos corredor adentro só querem chegar à oficina e recolher o faqueiro, quem sabe se também o pano e o frasco com borrifador na ponta, que contém o produto de limpeza. Só vai encontrar o homem, que sumira do campo de visão, já dentro do quarto, sem palavras a mostra; revirando a mesa, mexendo no fogareiro, eviscerando o estofo da cadeira com um canivete. Um canivete que apontou para João, que a esta altura, faqueiro como um bebê entre os braços, se dirigia à saída, evitava salvação naquele dia. Um canivete cujos pontos de ferrugem causaram calafrios em João, que ajoelhou a pedido do homem. Um canivete cuja ponta enxergava a estreiteza do quarto de um ângulo em que seria possível perfurar qualquer reação de João antes mesmo que ela acontecesse. O homem tirou de debaixo da mesa a estátua, maneta agora, tombada, do mesmíssimo santo da avó; o que supervisionara as mãozinhas retirando uma moeda do mar de moedas que o baú continha. Bateu com os dedos fechados na madeira do corpo da imagem até achar um ponto cujo som reverberasse diferente para dentro. Com o canivete esgravatou, perfurando a tinta da túnica, penetrando o santo por uma costela até chegar a uma concavidade que supôs oca ao percutir.
Resignado, João se encolheu crendo imitar suas moedas, que naquele instante calavam a algaravia que a reluzência provocava. Omitiam-se em ajudar como das outras vezes difíceis, em que sempre tinha uma delas - o dobrão português, de preferência - por perto para aconselhar e dar força. E mesmo ajoelhado permitiu a suas mãos rápidas abanar um tênue manto de poeira que a luz oblíqua da lâmpada tornava visível. As protegia entre os braços.
- O faqueiro não interessa, senhor, é mixaria.

- Tudo bem. Já tem o que quer? Pode me deixar em paz? - a boca tremulando por palavras que recém-aprendiam a andar.
A bofetada no rosto pedindo respeito, antes de ir embora ressoa aos ouvidos de João como a palmada da avó educativa, sendo que agora ao invés de ouro achado envelhecido, perdia um resto brilhante da herança que lhe legara. O homem cerra a porta com delicadeza, o estalo do trinco e as chaves entrechocando do lado de dentro asseguram que está tudo bem de novo. O santo perfurado e João não se atreve a mover por medo de que suas moedas percebam o que aconteceu. Percebam que foi tudo como na tarde daquele dia há quarenta anos: o dia em que para ensinar religião, a avó o fez ajoelhar e jurar na frente daquela estátua, ignorante àquela altura, as verdades com que o pregador o agrediria no futuro. Milho sob joelhos exaltados. Rezou, rezou a tarde inteira, a moedinha já era parte dos seus parcos pertences de criança, mas sempre era preciso expiar um pecado adicional ou outro. Prestando atenção no que tinha à sua frente: a porta que encerrava o baú, maquinalmente as palavras comprazeram a velha. Degringolou quando errou a oração do santo de que a avó era devota, aquele que tinha justo em frente, inaugurara uma inédita discussão com ela, em que foi acusado ladrão, mau-caráter, profanador e mesquinho, ao que respondeu tímido com as ironias que o ateísmo do pai lhe inculcara. A avó corpulenta do menino franzino. O santo fez vista grossa às palmadas que se empolgavam nas nádegas do netinho. A discussão começou a xingar a parte da família que  não descendia da avó, a parte que não lavava os talheres nem engomava as roupas nem usava sais de banho. Ofendido, além de arrastado casa afora; ao chegar à cozinha, foi surrado em frente aos cinco ou seis empregados do casarão. Tentou esconder-se sob uma mesa, de onde foi enxotado a vassouradas.

- Ateu! Ateu! Ateu! – Os empregados que vieram só assistir, juntaram-se à avó no coro que crescia e se elevava por sob a paz do pomar.                
Tudo era inédito até a cozinhava ser palco. A avó convidou os empregados a curar a tendência de João ao roubo dando cada um uma palmada em sua mão: um ridículo que achou desnecessário esquecer desde que ninguém o acusara de nada, quem foi preso foi um serviçal que disseram ser amante ambicioso da avó. Manteve intacto porque nem tudo na vida eram conseqüências. No segundo em que viu o sarcasmo estampado nos dentes com restos de couve de uma serviçal, decidira. Nesta mesma noite envenenou a água em que a avó depositava a dentadura antes de se deitar para dormir.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Fotonovela





A Berenice não foi a primeira pessoa de quem fui personagem: Me dublaram aos dezesseis anos. No dia em que preferi sair de casa a continuar vegetando, encontrei no chão um panfleto que me narrava, grampeei junto com a foto e os dois apareceram aqui, dentro dentro de um livro que enviaram:
         1. O menino olhar a lua e, acho, pensar em distância. Num átimo de raiva destacar uma flor das outras, querer jogá-la no chão. Certeza que ele e os irmãos moram com a mãe apinhados. Divisar na multidão os olhos do pai. Procurá-lo entre algumas poucas alternativas. Morreu, largou a família quando avisaram que viria um quinto filho. Ou os dois. Ou foi largado pela família enquanto dormia bêbado demais para reparar.
         Espaço aberto, bastante gente e ainda assim. Os olhos percorrer vários dos lugares. Parecer que ninguém mais quer comprar rosas. Os olhos mais para curiosos que para desanimados. O buquê cheio: mulher rir de receber, velhos não ter mais lapela, só risada sem dentes, essa música ser frevo não tango.
         Talvez nem ele queira descobrir por quê, cabisbaixo, agarrado a um estertor de orgulho. Muita gente sim, mas, não sei se de vergonha pelo braço, aborda constrangido. Difícil mesmo saber dessa distância se não ter a parte atrapalha ou ajuda ele a vender.
         Crianças de mão dadas com os pais, pessoas sozinhas que procuram pouco; cerveja, pipoca, maconha, banheiros químicos, consolo, formas em nuvens.
         Cansado, parar um pouco, apoiar o buquê em um banco. É nítido que ele não é pidão, nos gestos dele dá para ver que as palavras que ele usa não sãopara dar pena. Os outros parecer tão mais invisíveis quanto mais o ignoram. Aproveito e conto, dezoitos rosas a ser vendidas antes da lua se pôr. Uma velha comprar uma transigindo, uma mulher com uma máquina de foto comprar outra. Agora dezesseis.
         Esse tipo de evento, de graça e aqui, atrai sempre mais ou menos o mesmo tipo de gente. Não pode faltar barulho, cheiro de queimado e palhaços em pernas de pau. O menino se orientar bem no meio de tudo, sem estranhar. Quase nadar entre gente girando.
         Trançando por entre dançarinas incansáveis, chegar aonde ficam uns casais se engalfinhando; não querem intrusos, é mais difícil sim, mas é bem provável que apanhe em casa se não vender tudo. Se ainda fossem poemas, ou colares, ou a salvação, faria sentido passar sem ver, flores não se explica muito - comprar seria corriqueiro, num assomo de qualquer coisa.
         Ganir com o murro de um namorado ofendido e recuar quase perdendo o equilíbrio. Finalmente desistir. Corro gramado afora quando percebo que se afasta. Esbarrando nas pessoas, alcanço e ofereço uma carona que ele aceita sem perguntar para onde. É mais calado e gentil do que a primeira vista.
        Talvez a dificuldade em colocar o cinto de segurança, mas ele tem um ar meio de contrariado com a situação. Mostrar isso sem articular nenhum som, evitando chances de que eu puxe assunto.
         2. Carro já em movimento, descendo a avenida deserta.
         Aonde você quer ir?
        Meio assustado, murmura palavras que eu não entendo. Repito.
        - Aonde eu te deixo?
        - ...
         O momento de silêncio perturba, vou rodar a esmo pela cidade até ele se dignar a me dizer algo. Eu nervoso não paro de falar merda.
         - Tem noção que quando eu te vi ali no meio de tantas pessoas que servem para nada, você me chamou atenção de cara? Pois é, te achei bonito, educado, é ciente do seu lugar e do seu papel no contexto; é uma pena você ter jogado as rosas fora na hora de ir, eu compraria alguma de você. Só pra te ouvir dizer alguma coisa. Já te contei que quase nada me interessa mais? Não tenho tanto dinheiro, nem tantas coisas que eu queria ter, mas mesmo assim nada tem graça. Por isso que você me surpreendeu tanto, você é o que eu vim esperando esse tempo todo.
         Me enraivecendo com ele nem olhar pra mim, só ficar brincando com o acendedor de cigarro do carro. Nem sei se seria engraçado se ele queimasse a única mão que tem, mas sei que eu riria: um grito seria a grande chance de ouvir a voz dele ao invés da minha.
         - Eu sou poeta, escrevo e tal, mas não vivo disso. Meus pais até me deixaram dinheiro, mas eu gastei tudo com bobagens de cheirar. Por isso hoje em dia finjo que ir a eventos ditos culturais vai me tornar mais culto. Me aculturar de certa maneira. Porque é bem isso, não faço poema, só poesia, um dia talvez você também descubra o prazer em rimar os sentimentos com as palavras. É assim, simples, basta pontuar direito,
        -escorro meus dedos rosto dele abaixo. Estendo a mão e alcanço uma garrafa que deixo sempre no banco traseiro pra essas ocasiões. Recusa com a cabeça e continua sem falar
         - colocar os pronomes, você sabe o que é um pronome?, nos seus lugares devidos.
         Estaciono o carro num lugar sem gente a vista. Os gestos do meu amiguinho estão mais fluidos agora e ele ainda estátua de sal. Como se eu tivesse feito algo contra ele de propósito. E nem foi. O tapa soa ainda mais forte porque as janelas estão abertas e o concreto ecoa. Nem as lágrimas dele fazem barulho quando caem.
         Abro o short dele e seguro esse pau mole, ou será que é desse tamanho mesmo?, chego bem perto, e ele desvia do meu hálito ardido, beijo seu pescoço enquanto seguro o cotoco: ao perguntar o que ele quer que eu faça ele começa a chorar mais, calado sempre põe a mão na maçaneta, ao que hesito; é aí que perco a noite porque ele sai do carro e eu nem tenho vontade de seguir pra convencê-lo de nada.
         3. Voltando pra casa meio triste, não sei, uma sensação esquisita de por dois segundos quase achar que encontrei meu pai hoje. O dinheiro que eu ganhei não dá pro ônibus, talvez tenha sido isso, um cara ter adivinhado que eu tava sem dinheiro pra voltar pra casa e por isso me oferecer carona, foi o que me fez pensar que ele tinha me identificado e eu não a ele. A grande merda é que era um viado que só queria me comer. Não sei como vou explicar pra mãe porque tô chegando a essa hora sem as rosas e sem dinheiro. O foda é que por muito menos eu já apanharia: pode nem valer a pena voltar pra vida de bosta, não é como se eu fosse passar mais fome do que já passo e ter menos dinheiro do que já tenho se saísse de casa. Já não sou criança pra ficar apanhando, tendo que entregar meu dinheiro pros outros. É melhor mesmo ir embora como o meu pai, tenho certeza que ele é rico e come uma mulher gostosa diferente por dia. O problema é meu irmão, o Acácio, foda-se os outros, que ela minha mãe trata bem, mas ele ela trata pior do que ela metrata. Queria protegê-lo das merdas que acontecem comigo, impedir que viados deêm carona pra ele, essas coisas. Mas não sei se vale a pena voltar só por ele, talvez eu devia só procurar nosso pai e voltar com ele pra casa, a mãe não me bateria por isso, mesmo assim, é uma merda largar o muleque lá. Vou pra casa hoje, amanhã eu decido, vou ter que descer pra cá pra cidade de qualquer jeito. Às vezes eu me pergunto o que é maior, o silêncio dentro de mim ou o silêncio daqui. Quase chegando, mas eu sei que não vai ter ônibus a essa hora e não tem como eu ligar avisando. Pode ser a chance de ir embora, vão achar que eu desapareci, mas procurar ninguém vai mesmo, boca a menos, comida a mais, tá bom.
         Puta que pariu, PM’s. Melhor entrar por aqui e não ser visto, sei lá qual é o humor deles hoje.
         4. Esse carro tá bebendo bem mais do que deveria, mesmo assim vou em marcha lenta, acompanhando ele de longe, na calçada, esperando ele virar pra trás me procurando. Se ele fizer isso, eu finjo que passo direto só pra ele ficar com saudades.
         Mas é claro que eu não passo direto, dou uma ré e abro a porta do carro. É quase de manhã e a lua continua muito grande, ele anda sem olhá-la de novo, olha os próprios pés esbarrarem neles próprios. Se distrai: meio pensativo, tropeça num saco de lixo, quase bate num poste. Nem carros nem gente perto, a rua é mais muda que ele a essa hora, esquisito pensar em como me atrai esse tipo de gente.
         Não tirei tempo nem para avaliar o que ele me faz sentir, foi só vê-lo ali, sem um braço, roupa meio esfarrapada, mas sempre polido, uma polidez de resignação, que já quis algo. Às vezes ser impulsivo é insuportável. Não gosto dele, meu objetivo foi só alguém esta noite.
         Tem um cachorro seguindo o meu amorzinho agora. Cheirando o corpo dele procurando alguma coisa, elétrico ao redor, é justo o contrário do menino reflexivo caminhando contra a lua.
         Tremo enquanto apago um cigarro, sinto que vai demorar mais do que eu previ e é melhor não buzinar. Surgiram policiais há pouco e vêm nessa direção; vista de longe, ele já desvia, entra num vão entre dois prédios, mas acho difícil que abordem um menino desses.
         Retorna à calçada onde posso vê-lo, o passo acelerado de quem não fez nada. O latido cão-guia acompanha acelerando junto, e emergem da tentativa de fugir umas ordens de fique onde está, mão na parede, pés afastados.
         Os três começam a correr e o cachorro se recolheu a um canto, som de botas acertando o cimento e os gritos dos policiais contaminam o que tornava o silêncio tão bonito.
         - Para aí, seu muleque fedorento de merda,
        - nem adianta achar que vai conseguir correr mais que a gente,
        - nessa tu se fudeu
        E  coisas assim, acelero o carro até um pouco mais à frente e emparelho com menino, rodas tornadas brancas ao raspar o meio-fio.
         A distância entre ser espancado, e sei lá mais o quê, e se safar vai diminuindo. O carro em movimento, seus dedinhos se agarram à porta do carona, recém-aberta:
         - se quiser entrar vai ter que me dizer seu nome, querido.