quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Dentro.

Y viceversa.
Rodrigo Fresán

Não que eu seja assim impressionável. Embora persistisse a impressão de estar dentro da piada do filme, ou seja, uma cabeça de cavalo implantada entre os lençóis estaria espionando, rindo de mim com todos os dentes. Só faltava descobrir em que lugar da imensidão do colchão se esconderia. Bem que eu insisti para a minha ex-mulher levar a cama na mudança, eu insisti. O problema é, ela recusou levar qualquer coisa que não fosse sua valise de cosméticos – motivo da separação, aliás - e o trambolho restou aqui: grande demais para um corpo que cada vez vem precisando de menos espaço. Desde que ela partiu, ouvi cada vez mais barulhos vindos dos cantos da casa onde guardo trabalhos que esqueceram por aqui, de propósito ou não. Rebuliço de balidos, relinchos nos corredores, um crocitar recorrente vindo de trás de um vaso; minha casa virou um museu e o fato de os passos e ações dos objetos expostos ganharem voz à noite me deixa intranquilo.
Já deveria estar acostumado a estar cercado por um zoológico de impostores, e de fato estou; a questão é que nem mesmo o longo tempo de serviço me preparou para a casa começar a abrigar ruídos surgidos de lugares recônditos. Ruídos muito familiares aos que fizeram aquilo com que trabalho, sou empalhador. O fato de morar numa ilha não ajuda nada na minha profissão, taxidermista como diz a carteirinha profissional. Na verdade atrapalha: seja pela corrosão propiciada pela maresia, seja pela dificuldade que os parcos clientes encontram em chegar aqui. Por isso abri uma representação na cidade, comprei um quiosque para atender quem quisesse conservar o seu bichinho de estimação para todo o sempre. Fiz um acordo com o barqueiro em relação a todo dia trazermos os serviços de barco ao fim da tarde, na alta da maré.
O cavalo foi mesmo o mais difícil, o pouco calado do barco não comportava duas pessoas e mais um animal que pesava o que sete pessoas pesam. Pior, tanto o barqueiro não saberia acomodar o corpo do animal direito e provavelmente o largaria de qualquer jeito na praia à mercê das gaivotas, quanto eu não sabia manobrar o barco para desviar das pedras pontiagudas que cercam a ilha em que me isolei. Resolvemos esse problema de lógica na calada da noite; serramos a cabeça do cavalo fora e a deixamos em um freezer para não estragar. Tudo muito discretamente; não sou de falhar serviço e também não queria que o seu Abílio visse o querido animalzinho decapitado desse jeito. Chegando à ilha, depositei o corpo no freezer próprio; voltamos e eu pude recuperar a cabeça, que também congelei em casa. Posicionei a cabeça do cavalo de forma a não ter que encarar seus olhos embaçados ao abrir o freezer. Quando empalhasse, eu costuraria a cabeça ao resto e cobriria a sutura com pele artificial, ninguém daria pela artimanha.
E ninguém deu mesmo, nunca vieram buscar. Cogitei avisar ao Seu Abílio que viesse com um barco robusto recolher o cavalo: faltou tempo hábil, ele morreu antes que eu concluísse o trabalho. Nenhum parente se interessou pela herança ou quis pagar pelo meu serviço. Pelo menos não me encomendaram empalhar o velho, em memória do qual o cavalo foi ficando. Era comum isso; por condolência com o trabalho feito, sempre sobrava por aqui alguma ovelha ou periquito a pagar, que eu, dependendo, jogava ao mar ou mantinha em casa.
A minha casa começou a impregnar-se de barulhos de bicho há umas duas semanas. No começo, discretos, não diferiam muito dos grilos que sempre cercaram a casa e dos cupins que costumam roê-la por dentro. Imperceptíveis, pareciam com a impressão de aparelho eletrônico ligado em outro cômodo, uma estática de fundo: subliminar. E mesmo quando a intensidade aumentou a níveis alarmantes, sempre restava a desconfiança esperançosa de ser um relance, ou um engano. Um coaxo aqui, um pio acolá. Sempre breves o suficiente para demarcar um rastro na audição, nunca o som em si. Um zumbido ali. E eu que nunca tive dificuldades em dormir, comecei a trabalhar madrugada adentro, queria cansar bastante e dormir direito depois. Porém, quando não ir à cidade durante o dia provocou uma queda drástica no número de pedidos, recuei ao turno do dia. E aos tormentos noturnos: interrogações dentro da cabeça sobre ter ouvido ou não um mugido vindo daquele chifre esquecido encima da estante.
Tecidos moles são prontamente retirados, logo no início do processo de embalsamamento. Os olhos, por exemplo, são substituídos por próteses de vidro. Técnicas modernas conservam as vísceras injetando fluído plástico no sistema circulatório do que se quer empalhar. As técnicas antiquadas, das quais sou simpatizante por falta de recursos, lançam mão da palha para preencher o espaço deixado pelos órgãos ao ser retirados. Pessoalmente uso fibra de coco para isto por ser o material mais a mão.
Deitado na cama em que cabem oito de mim, lado a lado, gastava boa parte da noites da primeira semana classificando o que eu ouvia. Se cochilava por alguns instantes, logo o gemido de dobradiça enferrujada me arrancava do sono para me largar em um sonho; acordado ou dormindo comecei a detectar seus passos em rotas sonoras pelo assoalho da casa. Foi aí que eu aprendi: um casco fendido pisar no chão de madeira faz um som diferente de um pato chapinhando sob os móveis que faz um som diferente de uma rã esparramar água, atingindo o fundo da pia de alumínio. Quando vi a sombra de uma mariposa translúcida, com o respectivo orifício causado por alfinete na barriga, traspassada pela luz da lua voejar basculante do banheiro adentro, resolvi que o exílio era a melhor opção. Levantei da cama, acendi a lâmpada e a casa toda se fez em farelos de silêncio, até os cupins pararam para escutar. A solução pareceu óbvia, então; conforme ia pelos corredores acendendo cada lâmpada, acabava por verificar que os animais eram apenas estátuas, portanto restritas ao lugar em que eu as repousasse.
Por via das dúvidas desisti do quarto. Já que tampouco podia trabalhar, meu refúgio foi a televisão. Subi no telhado, mexi na antena para fazê-la melhorar dos chuviscos. Confinado aos canais abertos, fiz esforço para me entreter com reprises de reprises de filmes há muito exibidos. Um ou outro pornô salvou algumas noites; ainda incomodava a impressão de movimentos de silhuetas atrás do sofá, no limite periférico da visão, embora eu me negasse a perceber os ruídos crescendo. Sono eu tinha e tenho muito, habitualmente dormitava ao longo de um documentário sobre animais e despertava em um filme de luta, qualquer combinação assim. As luzes permanentemente acesas não facilitavam. A suspeita recorrente de estar inventando não facilitava. Acordava bem cansado, todo torto por causa do sofá, dor nas juntas e no pescoço.
Voltar à cama estava fora de cogitação, vá lá saber quais são os planos desses bichos ou o que eu descobriria se abrisse a porta do quarto. Aqueles barulhos praticamente me expulsavam de casa; um pouco mais a cada noite por mais que eu pretendesse submergir nos programas da TV. Era crítico, daqui a pouco eu teria que fazer uma cabana de folhas de palmeira na praia. Nem jogar um deles no lixo ajudou, durante a noite os ruídos eram igualmente intensos – algaravia de convenção – e ao dia seguinte a pomba retornara ao poleiro de onde eu a desalojara.
Esta noite era para ser especial, não sei que milagre aconteceu para anunciarem uma exibição da maratona d’O Poderoso Chefão. Eu nunca vira o filme, por mais que morresse de vontade. Inclusive dormi durante o dia, no sofá também, para ter a disposição de encarar as quase oito horas de duração total da trilogia. Abri um refrigerante e peguei amendoins. Em vão tudo, só agüentei até a cena do casamento antes que o sono se apoderasse das pálpebras; fui domado por um estupor que oscilava entre vigília e sono. Baita filme chato, fico até agora indagando se a cena cabeça de cavalo deixada na cama para, por meio de um senso de humor característico, assustar era cena do filme ou do resquício do sonho.
Sei que não agüentei mesmo. Ignorei ter derrubado a mistura de refrigerante e sal dos amendoins encima do controle remoto e cambaleei rumo à cama que vinha evitando há semanas. Nisso de trôpego de sono abandonar o filme nem atentei para os ganidos, cacarejos, miados que - suponho - pululavam ao meu redor. No meu sonâmbulo trajeto insone preocupava mais o som do abajur que demoli ao apoiar a mão em uma mesinha espatifando no chão. Rebotalho da partida da ex-esposa; ela decorara a casa para não querê-la à hora da divisão dos bens? pois bem, agora meu inconsciente suplicava por essa purificação. Mentira, sem regozijo pela destruição da mobília, que é provável que os bichos comam quando eu não esteja mais aqui; a bem da verdade, eu só queria dormir. Por isso o descaso ao pisar nos cacos de porcelana. É bom fazer o máximo barulho possível para espantá-los.
Girei a maçaneta com a mão esquerda, enquanto preparava a direita. Hesitante porém negligente, abri a fresta entre a porta e a moldura com o tamanho exato para caber a minha mão; percorri urgente a parede com os dedos até localizar o interruptor. Vislumbrei num relance após acender a lâmpada, o quarto ressonava semelhante a como eu o deixara. A diferença se resumia à janela fechada, a qual escancarei para arejar escuridão. O meu medo era o percurso entre o interruptor e a cama por ter de ser cumprido com a luz apagada. Apaguei, um raio da luz da lua incidindo diretamente sobre a cama deu a impressão de que algo avolumava sob o lençol; fechei os olhos de vez, pois não quis descobrir. Deitei, restauraram os estrondos mais alto que nunca. Sempre de olhos fechados, era como se de rabo de olho eu presenciasse movimentos do vulto à esquerda. O quarto todo tornado um teatro de sombras.
Não que eu seja assim impressionável. Mas a impressão de que a cabeça sangrenta do cavalo rir da minha cara em algum lugar sob estes lençóis dificulta o sono fica diluída no sono acumulado. Por sorte ou por azar é esse mesmo sono acumulado que me faz duvidar entre ser sono, sonho ou realidade o fato de que começam a eviscerar meu tórax. Já o farfalhar da palha ao ser socada dentro de uma cavidade corporal é uma sensação mais plausível e próxima a mim, provavelmente consciente.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Ao sexto andar.


- Sexto – esbaforida, pouco a fim de conversa.


Térreo.

- Tempo esquisito, né? – o Outro diz apertando o botão.

- Sim, há dias em que há três estações – Ele responde enquanto aperta todos os botões do elevador, que daí em diante parará em cada andar. Ao esconder as mãos atrás das costas como uma criança travessa que foi descoberta, Ele dá um risinho.

Primeiro andar.

- E eu que trabalho lá pelos lados da Jânio?

O Outro responde- Trabalho lá também. Ela apenas olha o visor de um celular que tira do bolso e abre, no que é flagrada pelo Outro.

- Pois é, saio daqui de manhã e está um solão, chegando lá é só neblina.

O Outro assente com a cabeça, pouco interesse. Ele vira as costas para os outros dois, afetando novo interesse pelo painel de botões. Aperta de novo todos os botões. Segundos depois vira de volta, encarando-os rindo.

- Por que será que indicam o térreo com a letra P?

- P é de pilotis – o tom de voz de Ela está mais cansado que desdenhoso.

- Ah, ok.

Ele faz uma tentativa ainda - Você trabalha onde lá na Jânio, companheiro? –mas é interrompido pela abertura da porta do elevador.

Segundo andar.

- Descendo?

- Não.

- Como se coubesse mais alguém; – A piada de Ele só carrega mais os ânimos e o ambiente. Ela respira fundo e com força para contornar um esgar de nervosismo – mas longe de mim sugerir que tem alguém gordinho nesse elevador.

Ela o fuzila mentalmente. O Outro vira o rosto, para não mostrar reação ao engraçadinho; faz mais uma tentativa, com Ela desta vez.

- E como anda o Tato? Outro dia via o Cadu descer com ele.

Ela retira um pacote de batatinhas fritas de uma das sacolas que está dentro do carrinho. Lê as informações nutricionais na embalagem antes de abrir. Não oferece e as come com avidez. Parece meditar antes de responder.

Terceiro andar.

- O Tato anda bem; naquelas, você sabe.

- Ouvi o Otávio dizer que ele está melhorando – baixam o tom de voz, querem evitar intromissões de Ele.

- Bom, teve de passar por um procedimento semana passada.

Falham em evitar.

- A minha sobrinha estava com problemas de Tato também, mas o tatuador disse que consertaria sem cobrar a mais, e... – a digressão piadista de Ele é cortada por palavras resignadamente abatidas de Ela.

- Tato é o meu filho, ele tem probl...

O solavanco suave do elevador parando a interrompe.

 – Opa, esse é meu andar – Ele sai abafando as risadinhas que crê também ter provocado nos outros dois.

Quarto andar.

A mão que o Outro pousa no ombro de Ela pretende ser consoladora.

- Ele está bem agora?

- Sim – afasta o ombro incomodada.

Silêncio constrangedor.

Quinto andar.

- Espero que não tenha sido nada grave – O Outro a olha nos olhos. Ela olha para os lados, evitando.

Mais silêncio.

- Bom, agora vou dar o remédio dele. Sorte que ainda peguei a farmácia aberta – Ela abre de novo o celular, cujo visor agora indica terem passado oito minutos da hora da dose do remédio.

O elevador pára no sexto andar e os dois não se tocam em despedida. Apenas trocam as palavras escassas de hábito.

- Se cuidem vocês – o Outro tem algo a mais a dizer, mas só fica perplexo diante da ausência de resposta de Ela, há tempos não a via tão macambúzia. Ela terminou as batatinhas, limpa a mão na calça antes de sair.

O Outro a toca no ombro outra vez, com a ponta dos dedos; condoído com Ela ter de carregar tanta coisa.

- Ei, você não quer ajuda com as compras?

- Obrigado.

A Vizinha esperava à porta da casa de Ela. Apreensiva enxugava as mãos imaginariamente molhadas com um pano de prato, repetitivamente. Apesar da pressa de Ela, o Outro vem à frente empurrando o carrinho abarrotado de sacolas plásticas com comida e produtos de limpeza disposto, mas lentamente por causa do peso.

- Dona, o Cadu saiu mais cedo para a faculdade hoje e me pediu para ligar para a senhora caso o Tato precisasse de algo, mas não deixou a chave nem o número da senhora. Há uns quarenta minutos o Tato começou a berrar e bater nas coisas, fez o escarcéu de sempre.

A pressa dispara os gestos atônitos de Ela

- Tudo bem, já vou dar o remédio dele.

- Na verdade, eu estou preocupada é com ele ter parado de gritar há uns dez minutos.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Dez centavos.



O corcunda que sabe como deita.

Ditado popular

Haurimento deliberadamente provisório.  Amarrando um cadarço como gostava de fazer, corpo curvado meio escondido atrás do balcão, e procurava um original deixado na semana anterior por alguém cujo semblante fugia. Esta posição, em que gastava a maior parte do dia, agradava porque permitia limpar as impressões digitais das fotos três por quatro com alguma ponta do jaleco menos manchada de tinta, sem incômodo. Quase bateu a cabeça no balcão quando a voz que o chamou era a mesma do telefone, ou seja, a voz que não condizia com a figura conjecturada a partir da voz sonhada. A mulher não era a mesma, não obstante. Ao que parece, todas as duas ou três mulheres que reincidiam em ser inferidas da matéria do sonho por ele tinham jeito de ter a mesma voz e sotaque e vocabulário, sonhados mas diferenciáveis, atribuíveis a pessoas distintas. Essa tinha essa voz, esse sotaque, pastas de documentos que queria fotocopiados para aquela tarde. Tanto o tailleur acinturado quanto o tom pomposo com que dava a impressão de afavelmente querer mandar sugeriam advocacia, à revelia da noção dele de que quem tirava cópias dos documentos para as repartições públicas eram estagiários, o que os rebaixava a ser menos que operadores de fotocopiadoras. Apesar de o patrão não estar na loja, e talvez por isso mesmo, prontamente atendeu. Limpando os dedos no jaleco, não escondeu o bocejo com a mão em frente à boca. A boca dela crispou-se visivelmente contrariada e largou de altura considerável o montante das pastas sobre a madeira do balcão. O estalo acordou de vez.
 O que deseja?
Preciso disso. Três vias encadernadas, às três da tarde – na pressa ela percebeu que os documentos estavam fora da ordem, começa a espalhá-los ao longo do balcão; conforme identifica o número do requerimento e data de expedição forma uma pilha à esquerda. Ele mexe quase imperceptivelmente nos cartões postais que o patrão posicionou no balcão pra alavancar o faturamento, já decorou todas as paisagens e até as mensagens que escreveria em cada cartão postal, mas ainda assim: sempre é bom por o dedo em lugares cujo acesso o salário vedaria – eu passo aqui pra recolher.
Tudo bem. Pagamento agora ou na hora da entrega?
Na entrega. Quero também revelar uma foto, fica pronto até a hora de buscar as cópias?
Enquanto confirma que é possível sim entregar os serviços no prazo que ela impôs, ele pensou nos esparsas serviços encomendados até aquela hora do dia. Uma certidão de óbito, um atestado médico, uma carteira de motorista e um passaporte de que um bigodudo pediu duas vias. Tudo mixaria que mesmo assim é provável que alguém se interessasse em roubar. Se a boca banguela do caixa registrava vinte e três reais, ganhos em quatro horas e meia de funcionamento, a culpa era do homem de boina que pedira para ele fotocopiar cento e vinte vezes um mesmo pedaço de papel de jornal rasgado de qualquer jeito. Sem foto, o papel tinha um número de telefone rabiscado com caneta grossa. Uma notícia com intenção de direcionar a uma provável reportagem maior dentro do jornal, que contava em poucas palavras a história de um homem que sabia de um irmão gêmeo seu que morrera durante o parto. O que esse homem, órfão de pai e mãe desde que nascera, não sabia é de que na verdade a mãe carregara três meninos na barriga. A mãe frustrou-se com a morte de um deles e resolveu manter só um, dois seriam uma recordação amarga demais da morte do terceiro. Por isso entregara um dos bebês que sobreviveu às freiras para adoção. O bebê que deixou compulsoriamente a divisão de proteção ao menor da Santa Casa aos dezoito anos era o homem que as cento e vinte cópias disseminariam em breve bairro afora. O homem de boina afirmou veemente que devia ser ele o irmão que havia sido criado por pais, que era seu dever por ser cidadão encontrar o seu irmão gêmeo que fora abandonado no mundo. Embora os pais o tivessem criado muito bem, nunca mencionaram nada a respeito desse irmão dado à adoção. O homem da boina acreditava piamente em que esconderam a verdade em prol de preservar a formação de sua identidade.
Ao ouvir do homem da boina que quer as cópias rápido, ele apenas assente com a cabeça. Justo ele assente e justo nele nada é comovido diante daquela história, por mais que não guardasse boas recordações do orfanato. Lá dentro era proibido usar essa palavra, por isso ele a repetia com tanto prazer, mastigando cada vogal, escarafunchada para trazer à tona mais do gosto inebriante. Bater não batiam, mas o abuso sexual entre internos – e entre internos e tutores - era freqüente e respeitador de uma hierarquia clara, ligada à força e ao desenvolvimento físico do menor enclausurado. O rateio da comida escassa também respeitava essa hierarquia. Brinquedos só chegavam a ele já sem um olho, com uma roda empenada.  A melhor parte era quando no meio da noite se sob a sua cama de aço escondia acompanhado de seu lençol. Com um espelhinho de maquiagem roubado a uma das mães que quase o levaram dali, canaliza a luz da lua para uns recortes de jornal que encontrava vasculhando o lixo. Com cuidado tentava recortar com os dedos os rostos nas fotos; os equiparava, viessem eles da coluna social ou do caderno da polícia, raramente do obituário. Quem sabe um sorriso estampado ou mãos algemadas em cima de uma cabeça não encerravam uma resposta sobre o cárcere? Ficou feliz de ficar velho ao descobrir que a estadia ali tinha prazo de validade. Ao sair de lá no dia do seu décimo oitavo aniversário, expulso por exceder o limite de idade de permanência, sua sorte grande foi o velho com cara de safado, o qual lhe oferecera esse emprego no cubículo em que agora trabalhava. Ainda bem que até agora o patrão tentara nada. A bem da verdade, nunca entendeu as razões de ter nascido já confinado e sem pais. E não atentaria para elas até depois de o homem de boina recolher o pedido. A diretriz do patrão no caso de grandes pedidos é sempre entregar dez por cento a menos das cópias, ninguém contaria mesmo. O homem prendeu as cento e dez folhas de papel entre o braço e o dorso, depois de um suspiro curto admitiu que colaria cada cópia daquelas em um poste, quem sabe alguém se prontificasse a ser seu irmão. Saiu da loja num passo vagaroso de quem talvez se incomodasse com uma verdade doloridamente improvável.
Obrigado.
Volte sempre e boa sorte – poucas certezas sobre se ele disfarçava ou não ter entendido a extensa lengalenga do revolucionário de jaqueta.
Tenho certeza de que é meu irmão e de que as forças do produtivas impetraram mais uma injustiça que deve ser reparada.
Ele aproveitou a saída do homem para sentar-se a um banquinho baixo e amarrar um cadarço e um bocejo cavernoso da papelaria/loja de fotografia/fotocopiadora em que trabalhava escarneceu do vazio ao redor. A altura do banquinho só deixava à mostra o topo da cabeça dele por trás do balcão. Esfregou o polegar no dedo médio, limpando a tinta na borda do jaleco. Procurando em vão por serviço deixado para trás, listar mentalmente as categorias provocou a mudança de uma foto de coluna. Um arranhão na ponta de um dos dedos denunciou a ponta de um papel em uma das prateleiras sob o balcão que usava para acumular o serviço.  Ao perceber que esquecera uma cópia das do homem de boina, chegou a pensar em sair da loja, deixando-a ainda mais deserta para ir devolver mas a indolência venceu. Reordenou algumas outras fotos, as quais transferiu para a região das que seriam levadas para casa no dia para ser guardados no túmulo definitivo da caixa de sapatos sob a cama. Caixa esta abarrotada das caras anônimas que ele gostava de imaginar que sorriam para ele. Pela primeira vez indagou por que não tirar uma foto sua para pôr ali, tinha a máquina fotográfica da loja à sua disposição. Depois talvez, pensa enquanto tenta abaixar a ponte levadiça que separa a memória de curto prazo da de longo prazo. Contudo, a dor do arranhão é mais convincente do que o atiçamento dos feixes neuronais e o trouxe de volta, a tempo de flagrar pela vitrine duas mulheres diferentes – diferentes também das sonhadas - caminhando com gestos idênticos – idênticos aos presumidos da mulher que ele presume a partir da voz no telefone; não obstante um raio de sol retalhe as maçãs do rosto de uma das duas da calçada para que se pareça a uma das ausentes do sonho. Sentou de novo no banquinho concentrado semi-esquecido do papel retido entre os dedos.
E só notou ao começar a ler pela terceira vez. Tendo notado, leu tantas vezes que quase chega ao ponto de desbotar os sentidos das frases da notícia; decorou tudo que estava escrito no papel após exaustivas passadas de vista em que forçou a atenção a um grau que o trabalho, ou qualquer outra atividade, estava longe de lhe exigir. Ao imaginar a árvore de possibilidades que a notícia acarreta, sem considerar que seria meio difícil escreverem uma notícia sobre ele sem consultá-lo ou avisá-lo, descortina variedades incríveis de fama, de detalhes meticulosamente previstos a uma luz enganosa. E ainda mais enganosa porque, se as feições dele e do homem da boina não coincidem, um dos dois deve estar errado. Hesitou em voltar ao seu apartamento; uma caixa de sapatos cuja janela colada a um muro erguido de tal maneira que só permitia divisar dentro do cemitério rostos das pessoas vagando por entre as lápides, mais do que ventilar abafa e serve mesmo para canalizar a chuva rumo ao colchão e aos poucos móveis. Rostos e um ou outro pássaro, pousando nas flores que o pesar vigente nestes rostos levava para depositar. Hesitou em deixar ali o que faltava de mês no fim do salário e de vida no fim dos escombros de aspirações; num ímpeto de ousadia vai ao cúmulo de impor ao balcão o comparecimento de todo o dinheiro que tem no bolso, uma moeda de dez centavos que fez girar com um peteleco melancólico dos dedos. Desejou a sua foto três por quatro ampliada numa capa de revista, a oportunidade de ouro. E viu a chance de, ao largar a loja, ao virar celebridade, outros o copiarem. Entretanto, para sermos sinceros, só dá para afirmar que depois de desmanchar o feitiço que lhe emasculou o rosto por quase três segundos, ele ouviu o sininho anunciador da entrada de alguém. E ficou satisfeito por conseguir mais serviço naquele dia tão magro - não mais que os outros - de receita. O pedido de cópia do atestado de óbito foi simultâneo à mão em torno da folha de papel, tornando-o uma bolota antes de encaminhá-lo à lixeira.
*Conto escrito em resposta a um desafio que lancei ao Felipe Carriço. Um conto com a palavra fotocopiadora. 
Blog dele: http://naomefazpensar.wordpress.com
Twitter dele: @carrico