quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Velas brancas no lugar de negras.

I know the ways of pleasure, the sweet strains
George Herbert

Ontem pescamos de um jeito novo, eu sugeri que ao invés de espancarmos a superfície do rio com um galho grosso de madeira e esperarmos um peixe aparecer boiando em um lugar que não fosse fundo demais para irmos buscar, pegássemos um galho mais fino e palitássemos a água onde supostas bolhinhas aflorassem. O Robinson aprovou de cara, andava meio desanimado com comer carne porque o método antigo era muito pouco eficiente mas concordou. Só comendo cocos e folhas já estava ficando magrinho, e a esta altura não conseguia nem sair e coletar: minha responsabilidade fazer tudo, enquanto ele ficava na cabana, trançando a corda com que amarrará os troncos da jangada com que nos arrancará a todos aqui. Eu, ele e tenho a impressão de que planejou levar um crânio dos que encontrou na caverna como carranca para proteger a jangada. Crânio ou fêmur: o Robinson tem muito apego a esses dois, dorme com eles perto e com certeza acha que protegerão nossa fuga. 


Outro dia o meu amigo explorador intrépido rasgou o pé de fora a fora com um espinho, que não viu, em que pisou no meio da mata. Três dias de febre, tudo pro Robinson o traumatiza com três dias de febres lancinantemente tropicais. Só veio cura quando usou um metro da corda de fibra dele lá pra pendurar o crânio logo acima das folhas sobre as quais ele dorme. E sob a supervisão daquele que foi num passado remoto algo entre humano deformado e macaco se curou. Fugir fugir ninguém seriamente deseja. Uma das primeiras coisas que ele fabricou - antes mesmo do porrete com que afugenta cobras e extermina babuínos - foi uma rede; tanto é que quando primeiro espreitei sua sombra na praia, só vi uma perna igual à minha, mas sem pelos, pendurada de uma rede. 


O Robinson adora aqui, só não consegue mais ficar depois de ver a caverna tão clichê e que realmente existe. Quer que eu vá junto para me exibir na corte da rainha e eu nem sei se quero ir. E ele também não, fica atrasando a corda, desfiando à noite achando que eu não vejo. Preferir febre tropical a gripe soturna. O Robinson não tem medo de mosquitos, mas tem medo de encontrar o que veio procurar, sob o pretexto de ter naufragado pelos mares do sul. Tudo pretexto, até a caverna com a qual ele faz de conta que se horroriza. Um buraco na pele da montanha, um buraco que guarda um pântano na barriga, vagamente o incomoda contra um horizonte azul e areia branca que reflete seu sorrisão. Quem sabe ele não vê silhuetas de homens nanicos no canto dos olhos; homens cujos dentes apodrecerão fincados nas carnes de alguém que já foi lorde? Tudo pretexto, vir aqui e ir embora de mãos abanando. Ontem também ele me ensinou a jogar xadrez, com umas peças que improvisou com diversas frutas, jogadas fora às pressas assim que, atraindo insetos, começaram a feder. Hoje ele me esbravejou contra a frustração dele: embarcamos amanhã. Um labirinto por outro e estar atracado a si mesmo é nada mal para quem a fuga é o caminho.

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