sábado, 28 de agosto de 2010

E o lançaram ao mar, e cessou o mar da sua fúria.

Sua imaginação nunca era tão voraz 
como quando começava a corrigir o passado,
Alan Pauls

O telefone era dos robustos, cuja madeira encorpada a partir da qual construíram o corpo amplificou o toque. A madrugada específica estar deserta de sons também amplificou o toque, que quando respondido por Aleixo anunciou com voz feminina pelo bocal, que há meses não usava: um homem a cinquenta metros de distância tem o tamanho de um dedo, um homem a duzentos metros tem o tamanho de uma unha. Mesmo tendo acabado de acordar, o Aleixo que atendeu ao telefone enquanto limpava remelas com a mão desocupada não usava robe ou roupão como o resto das pessoas do bairro; dormia de cueca e nem lhe ocorreu calçar pantufas ao levantar trôpego de sono para tentar fazer calar o ensurdecedor do toque que nem a densidade do sonho em que se metera lhe permitia ignorar. Um sonho sobre a mulher que destacada da multidão o abordava. Com o rosto envolto em um lenço, ficava calada e dedicara seus passos a segui-lo; se Aleixo decidisse entrar em um café e esperar, ela ficava na porta, de guarda. A voz que saía do telefone não pareceu corresponder à figura esguia sobre sapatos de salto alto e passos submarinamente lentos mas mesmo assim. A mulher se aproximava dele de lado e sem olhá-lo nos olhos quando o telefone o convocou a ouvir aquela única frase desconexa para depois ter a chamada desligada em sua cara. No sonho as pílulas deveram ser tomadas no mesmo horário. E mesmo assim, Aleixo tremeu ao atender, pensando que ela o encontrara, por fim.


Talvez não seja difícil perceber que o Aleixo facilmente decidiria dar um passeio noturno após ser acordado às três da manhã só pelo prazer de infringir os regulamentos. Apenas calçou as botinas, recolheu uma cartela de anti-histamínico e saiu pela porta, mergulhou na névoa. Optou pelo carro, para levá-lo a um inverossímil lava-jato vinte e quatro horas; argumentou consigo mesmo que havia merda de pássaros grudada na lataria. Se ele arrancasse a merda com uma espátula, a mulher - que com certeza sabia que carro era o seu - poderia identificá-lo por meio dos arranhões na pintura; mas se deixasse a merda lá grudada, a mulher o detectaria por causa das pintas brancas na lataria vermelha. Logo desistiu do carro, resolveu se esgueirar perto das paredes vivas de rabiscos dos prédios, quem sabe as pessoas não o notassem. Ou se notassem estariam tão sonolentas de rondas noturnas que o deixariam livre por confundi-lo com um animal qualquer que tivesse rompido o perímetro estrito de convivência, um animal dos que não dá vontade de apedrejar. Mas e se? Se a mulher fosse quem ele imaginou, será que adivinharia a predileção por burlar o assédio dos moradores de rua a quem saía de casa àquela hora. Se fosse a mulher do seu sonho com certeza guardaria no bolso da gabardina um mapa do bairro em que estariam marcadas a tinta vermelha as rotas que Aleixo propunha si mesmo, sem nunca testar, serem de fuga. Fuga da mulher em que ele tropeçou. Ela lixava as unhas apoiada na barra para amarrar bicicletas que fica do lado de fora do self-service que o Aleixo freqüenta. Esbarrão, pedido tímido de desculpas, semi-sorriso e a impressão de que as lentes dos óculos dela não desviariam dos seus calcanhares até Aleixo perceber, rua abaixo. O restaurante é perto do apartamento, prolongou o caminho para testá-la.


Fácil detectar a perseguição, que ela pretendia sutil; ao que parece a sombra dela fazia barulho de cortina: farfalhava ao roçar as paredes. Aleixo engole trêmulo uma pílula, que viu reluzir sob alguma luz da rua.


A mulher do sonho foi muitas mulheres, que se desdobravam espalhadas em pontos estratégicos da cidade e comunicavam por celular a posição do Aleixo. A suspeita era forte de ver insinuarem-se mais de duas saias longas sobre pernas apressadas, ao mesmo tempo: uma atravessando a rua desviando dos carros, a outra carregando um ramalhete de flores que pelo trêmulo das mãos devia estar quente. À primeira silhueta de raspão, Aleixo retrocedeu desconfiado de que ela podia estar infiltrada entre os notívagos que abordam os passantes. Não que ela fosse uma dessas pessoas que começavam a encostar quando queriam alguma coisa. Retrocedeu e no meio do caminho estacou. Só televisores esquecidos ligados perto demais das vidraças dos apartamentos baixos iluminavam a rua, de resto muito escura. Parado evitando o céu reparou na coincidência de ter à esquerda o posto de saúde em que a mulher tinha cara de trabalhar. Se pergunta ao descer a rua os motivos impensados daquela caminhada e conclui que a mulher podia não ter descoberto tudo que queria ainda. Um palhaço escora o cotovelo na moldura de metal do fusca que acabara de parar junto ao meio-fio. Fusca é o justo carro que ela provavelmente dirige para vir trabalhar.

Boa Noite – Aleixo, que começara a andar ao ver se aproximar o carro, vira a cabeça em direção ao palhaço.

...

Oi – Entremeia os dedos ao cabelo próximo à nuca com fúria moderada, o corpo memorizou o horário do remédio.

Oi.

Boa Noite.

Que foi? – a hostilidade como disfarce da vontade de sair correndo.

O senhor pode me dar uma informação? – bocejo lança perdigotos na cara do Aleixo – acabei de chegar à cidade e preciso saber se tem alguma fotocopiadora aberto a essa hora. O corpo mole de preguiça ávida aponta o fim da rua, se livra do palhaço talvez triste antes de perguntar as razões de uma fotocopiadora de madrugada. Continua parado assistindo os pára-lamas do fusca dobrarem uma esquina lá longe, indeciso entre voltar para casa e permanecer onde talvez o assaltassem – ou pior ainda, puxassem assunto. Cumpre trajetórias curtas, que acabam voltando ao mesmo ponto. Sentado vê um lenço tremular em uma janela (quase alta, vidro fechado), o lenço está em volta de binóculos que miram justamente as mãos unidas atrás do corpo, os passos curtos, os olhos que espreitam cada movimento que supõe na rua. Aleixo vê além dessa figura outra com um xale volumoso que assovia na calçada oposta, cara de prestes a atravessar a rua. Qualquer direção serve. Por isso toma uma de que depois não se lembrará. Uma direção em que tem que pisar as flores de um canteiro para chegar ao outro lado da praça. O vai e vem do balanço está mais forte do que se fosse provocado só pelo vento, como se alguém estivesse brincando no parquinho daquela praça segundos antes do Aleixo reparar.

Atônito ainda não, nem ao ver a mulher da calçada oposta abrir uma lacuna no lenço para posicionar um celular em frente à boca. O basta ajustar a telha do fuzil estranhamente não reverbera. A fresta por onde a outra mulher o observava – no que deve ser um terceiro andar – se extingue a um fechar de cortinas. O passo de intuí-la em alguma esquina o leva a considerar alguma rua movimentada onde pudesse se esconder. Considerou um porão - a casa do irmão fica ali perto - concluiu que casas não eram mais seguras, desde que rastreáveis pelo número do telefone. Considerou uma guarita da polícia, que ninguém além de pombos usava mais. Considerou um segundo parquinho: apoiados em cujas gangorras adolescentes estariam fumando maconha. Considerou os fundos do prédio que abrigava uma igreja evangélica. Precisava se esconder de uma voz que ouviu vir de dentro da cabeça vazia e considerou uma das rotas de fuga, uma que contava com que alambrado esburacado que cercava um campinho de futebol não tivesse sido trocado. Um lugar sem postes. Suspirou de alívio por não escutar eco de salto alto no concreto. Quem saberá se a mulher previu ou não que ele tentaria fugir justo naquela noite e inclusive adivinhou o atalho por que o Aleixo enveredaria se não fosse o tiro. Um tiro em algum lugar. Um tiro que sempre pôde ser fogos de artifício ininterruptos. Um homem evidentemente manteve distância ao tirar o chapéu em cumprimento. Saltos tique taque tique e xales esvoaçarem em esquinas segundos antes dele alcançá-los. Mais um estrondo, os vultos que divisou delineados contra algumas luzes da janela todos sugeriam os óculos e as mãos meticulosamente finas. Mãos de suturar com a facilidade do crochê, que ela tinha ar de abominar. Ela esteve em todas as janelas quando ele planejou fugir. Acabou não fugindo mesmo. E mesmo se esqueceu de recolher o seu braço; que em um segundo estava regular, no segundo seguinte ameaçava despregar-se do ombro, crivado de balas. Sufocou a dor em um grito lancinante. Lancinante mas sempre olhando em torno por imaginar que ela ria da sua decrepitude. Deixou lá os pedaços de carne que os tiros arrancaram, tomou uma pílula fora de hora. Perdido, talvez morasse na direção oposta, retomou uma caminhada que era errática desde o princípio. Ninguém reclamou do barulho do grito ou do tiro. A mulher o cercara há tempos; à espreita em cada vitrine e cada janela, anotava tudo o que poderia vir a ser útil, quem sabe oportunamente o chantagearia. Aleixo contorceu-se sem sair do lugar, quase tombou mas segurou o passo como pôde. 

Quer ajuda? – o batom borrado e algumas olheiras indicavam que talvez fosse tarde da noite até para a pessoa.

Onde eu posso conseguir um lugar para dormir aqui por perto? – Aleixo só sente a boca abrir, a dor não permite que ele tenha a remota noção do que está dizendo – estou com muito sono e preciso descansar.

Tem um hotelzinho na próxima travessa desta rua, – a dor tampouco permite escutar o que o travesti diz, se resigna a contemplar a boca dele abrir e fechar – quer que eu te leve? –Aleixo vira de costas e continua a caminhar, se escorando nas paredes sem responder. O homem falseia a voz antes de largá-lo lá. Se despede fanho e se afastando. Sem perceber que cambaleia pela perda do sangue, Aleixo atendeu a um orelhão, que murmurou numa voz que ele inferiu alterada por um lenço em frente à boca para sair guturalmente. Temos que abrir um aceiro de pelo menos duzentos metros de cada lado da estrada para que eles não nos atirem em nós. Aleixo resignado a sua perícia em guerrilhas adquirida ao longo da noite, surpreendeu um risinho abafado ao fim da ligação que teve certeza que era dela. Pensou rápido, antes que desligassem na sua cara, mandou o interlocutor à merda e arremessou o bocal contra o telefone. Um homem que dormia sob um papelão ergueu a cabeça procurando por quem fazia tanto barulho àquela hora. Camisa ensopada, o Aleixo arriscou uns passos que logo tiveram de ser amparados por um banco. Quando não agüentou mais passou de sentar-se a deitar. Do braço pendurado no corpo por tiras finas de carne jorrava ainda, enquanto Aleixo se esforçava a manter os olhos abertos para qualquer abordagem da mulher. Eventualmente dormiu; o assento do banco ser estreito só permite apoiar o corpo quando deitado: o braço fica pendurado para fora, meio que balançando pelo vento. Um ganido estridente fendendo a noite fez pessoas vir às janelas ver o que acontecera. Um cachorro tomou um tapa no focinho por se aproximar para lamber a ferida no braço do Aleixo. Em cada cabeça assomada ele reconheceu não só a curiosidade dela por ele, mas também o jeito cirúrgico, de gestos contidos. Uma sirene ao fundo, um barulho de corpo denso quebrando espalhafatoso a linha da água. Aleixo respira fundo várias vezes; tomando grandes fôlegos, quer se manter no estado que a dor o convida a abandonar, consciente, acordado.

É provável que ficasse atônito ao ver finalmente por entre os pés a mulher surgir vinda em silêncio do final da rua e sentar na ponta do banco, perguntando sobre sua saúde sem sombra de malícia no rosto. Oferecer uma ajuda que ele recusa refreando-se de desmaiar. Debater-se, o atrito da luta corporal não causar ruído. Quando se render, ela sorrir: vasculha a bolsa. A mulher o descalçar para massagear-lhe os pés. Murmurar uma canção que ou é só de vogais ou está cantarolando. Despojado das botinas impiedosas, Aleixo – para não dizer que acata o aconchego que a mulher impõe – apenas fechar os olhos.

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