segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Que te faremos nós, para que o mar se nos acalme?


Let the elevators creak and speak, ascending and descending in awe.
Allen Ginsberg

Quando com um estrépito curto de metal raspando o elevador estaca, os dois meninos dão atenção a uma lâmpada que se soltou de alguma presilha no teto e oscila enquanto as outras apagaram no impacto. Balançando como se enfocasse uma região do elevador de cada vez com um halo esmaecido. A oscilação é rápida e permite apenas por frações de segundos, de relance, o menino mais velho enxergar o menino mais alto acertar a posição dos óculos no rosto e resignado sentar-se no mármore tornado frio.
Já aconteceu com você isso antes?
Hoje quase passei daquela fase que você falou.
Qual?
A fase que cara encontra a porta azul.
E aí?
E aí que na verdade ele tem que arrancar a grade de um exaustor e entrar por ali. Já aconteceu sim comigo, mas sempre volta rápido.
Parece que o elevador balança de um lado pro outro com a gente dentro.
A culpa é sua. Você e suas apostas.
O menino mais velho se senta ao lado do amigo e se refreia em contar que quase foi descoberto pelo pai graças ao rangido da porta de casa. O horário que combinaram talvez fosse cedo ou tarde demais, mas isso nenhum dos dois admitiria. Uma questão extrapolando coragem e dos dois o que quase fingiu doença à hora de sair foi o menino mais alto. O que passou a tarde juntando a comida de que talvez precisassem para sobreviver à aposta foi o menino mais velho, enquanto o mais alto jogava videogame listando lugares imaginativos para esconder as embalagens das barrinhas de cereal que devorava seguidamente e não queria que a mãe descobrisse. Silenciados ânimos apenas iluminados pela luz do videogame portátil que o menino mais alto tira do bolso. A luz caleidoscópica apagou há exatos minutos.

Do outro lado, mais para o fim da rua, no único lugar da cidade em que ainda sobraram casa, o menino mais novo já resolveu participar da aposta, só para provar ao menino mais velho que ela é impossível de realizar. Lê uma revista roubada do quarto do irmão e espera dar a hora de correr rua acima até a entrada do prédio, em que os dois amigos são vizinhos; e com a impressão de serem ele e a revista bastante mais adultos, decide que pode fazê-los esperar um pouco. O ventilador de teto começa a tremer como se acometido de um vento súbito. Sutil, passa despercebido do menino, concentrado no prazer clandestino de ler O Escapista antes de sair para a noite, quando deveria estar dormindo. Levanta da cama e anota rapidamente uma frase de efeito d’O Escapista em um caderno aberto, sobre uma mesa. Bebe água sem notar que segundos antes de erguer o copo, na superfície líquida formavam-se círculos concêntricos. Seja lá quem propôs a aposta, aquela frase dá ao menino mais novo a certeza de que não a concretizarão. A certeza de que quando a propuseram só estavam eufóricos por faltar dois dias para o início das férias. O mês dera à luz muitas cerejeiras a cobrir com seus dedos de rosa a avenida (estreita, quase alameda) com um lençol de pétalas, a discussão sem vencedor. Os três meninos compartilham tudo, mas um deles tem a ilusão de mandar no grupo. Revolta tácita e consentida. O menino mais velho sempre aprontava tudo sem consultar ninguém e depois impunha planos descabelados que se davam certo era por pura sorte. Pula pela janela de seu quarto e no gramado do quintal percebe que esqueceu a mochila; volta. Ao sair de casa, a um canto da boca do menino mais novo, um sorrisinho disfarçar escárnio é a consciência de que desta vez o auto-denominado chefe dos três amigos está errado em seus desígnios.

O elevador com um ronco e um estremecimento mais que perceptível volta a operar, o que não faz o menino mais velho retomar conversa, ou o menino mais alto desviar os olhos da tela brilhante e dos bipes. Só quando chegam ao térreo e se encaram, nos olhares cruzados a pergunta abafada pelo medo de um e pela vontade do outro de levar a aposta a um fim. Estamos combinados? O menino mais alto desliga o jogo sem salvar e esboça uma tosse que talvez o livrasse dos planos mirabolantemente falhos do menino mais velho para esta noite. E antes de atravessarem a moldura da porta de vidro que dava acesso à rua um tapa amigável nas costas encoraja a algo que quis evitar mas não tem jeito mais. O menino mais novo ausente ainda é bom porque dá tempo de verificarem o que há de errado com aquela por que não quer fechar. Com muito cuidado para não bater com força excessiva, um segura a maçaneta e o outro verifica se sobra algo entre a por e a moldura, ao que parece as dobradiças empenaram. Ainda tentam resolver isso sem ser desmascarados, ao acordar pessoas do prédio, e o menino mais novo assovia lá do fundo da rua. Um assovio específico, padrão conhecido só por eles, que denuncia tê-los avistado.

Sobe a rua e os carros escasseiam: apesar de ser só dez e vinte da noite, aquela parte da cidade não é rota de muitos carros, um bairro de pedestres, cujo acesso ao resto da cidade é feito por uma ruela estreita como aquela não é o lugar mais convidativo para roncos de motores pertubarem a noite. E de longe o menino mais novo só vê os dois atracados à porta, em silêncio como uma cena que esqueceram de dublarcumprimentam os três, reticentes dois em relação ao menino mais velho, cujo olhar pré-triunfante ofende e encoraja. Toques de palma da mão e, antes que alguém se assome a uma das janelas e os descubra, começam a caminhada até a árvore. Afastando-se, mas na mesma direção, já trocam as primeiras palavras mas ainda a três metros mais ou menos um dos outros dois desconfiados – a porta rangida do prédio deixada aberta -,
Eu tenho coragem
Duvido
Vocês não ouviram o Getúlio dizer que nunca ninguém conseguiu?
Eu consigo
Não consegue
Vocês dizem isso porque se cagam de medo de me acompanhar
E você já viu a altura da árvore por acaso?
Vi, e daí? Quem não viu?
Não dá pra fazer
Não é medo, é só que nem você nem qualquer um consegue
Impossível, e tenho dito
Cala a boca - presenciam o céu noturno, previamente tornado claro pela lua e por postes, escurecer com a densidade e extensão da revoada de pássaros que, subitamente surgida, a altura bem baixa; se desloca – as barrigas negras dos pássaros roçando o teto de alguns prédios - no rumo das casas do fim da rua, cujos fundos davam para uns barrancos lodaçais, limites da cidade a sudoeste. Uma maré de pássaros seguida de perto por uma correnteza de gatos famintos, que se interna portões das casas adentro, de olho no mar de comida que escurecia o céu imediatamente acima. Morreriam alguns gatos (miados raivosos e nenhum pio) que não sejam incólumes às quedas dos barrancos altos: pisoteados por outros gatos que também queriam comida. Os três garotos se entreolham, a noite é aquela, antes que mais algum acontecimento. Sem mais palavras, se aproximam de uma vez; agora como se com os toques, as palavras recentes juram que estão ali, às dez e pouco,  para performar o plano que o menino mais velho traçou.

            Após a revoada a lua se mantém intacta, na forma de uma tachinha reluzindo a uma esquina do céu. Nuvens que se agrupam a uma outra esquina decidem dar vazão a uma chuva fina, que passa a fustigar as cabeças desprotegidas.

As pessoas que vem pela calçada na direção contrária tem ar de apressadas. São raras. Mais raras ainda as que calmamente tomam seu tempo com se assustar pelo recém-absurdo do céu escurecido de repente por aves que provavelmente fugiam de alguma coisa. Caminhando sem pressas mas evitando falar alto como sempre, concentrados na missão que vem daí a uns dez minutos; os três meninos sincronizam relógios por simples motivo de terem visto isso ser feito num filme. Pergunta-se ao menino mais novo se ele trouxe corda: os primeiros galhos da árvore são altos demais, não simplesmente alcançáveis pelos dedos. E assim que chegam, antes de pularem a cerca de arame liso que separa da rua, engolem em seco. Assim que chegam à extensão de terra batida que baldia espaça dois edifícios. No meio, bem no centro da aridez agora úmida que o vento levantaria em forma de pó, se erige rigorosamente vertical a tal árvore; os meninos enxergam bem um trapo de pano azul tremulando amarrado a um dos galhos mais altos.

Engolem em seco ao intuir a árvore toda de uma vez. Embora molhem-se cada vez mais – a chuva engrossa -, as intenções não mudaram: um quer só escalá-la e tomar o pano azul que alguém esqueceu; o outro quer só provar que não é possível, tentando árduo e falhando por culpa da gravidade; enquanto o outro quer só ser tomado por uma gripe e desmaiar nesse instante. Os contornos entretanto estão embaçados, escassez de iluminação.

A noite evita que a árvore os amedronte.

O menino mais alto estaca para medi-la – os olhos baixos mal divisam a fronteira entre o tronco e o início da copa, de tão alta - ; o menino mais novo se abaixa alcançando duas ou três britas com que tenta alvejar alguns pássaros (brancos, pernas longilíneas) que ciscam o terreno obrigam o menino mais velho a parar também e, costas dadas à frondosa árvore que não quer encarar agora, finge atenção com o tráfego mais do que escasso de onze da noite em uma avenida esquecida.

Infiltram-se por entre as linhas do arame da cerca.

Dentro do terreno conferenciam abrigados da chuva pelo modo como a árvore se espalhava horizontal sobre eles. Se escondem atrás do tronco descomunal para evitar ser vistos por um passante eventual. O menino mais novo vai ser o primeiro a subir porque é mais leve. Escalará a árvore e amarrará a corda ao galho mais baixo e só depois disso os outros dois subirão. E fora do campo de visão dos outros dois, bastante mais alto e sem ser atrapalhado por folhas ainda, o menino mais novo senta-se em um galho, vê a cidade se espraiar até onde não conseguia mais delinear nada, tudo eram luzes. Amarra a corda a um galho grosso, verifica a qualidade do nó e grita que vai na frente até onde dá para subir dali. O menino mais velho sem ordenar o convence a ficar ali até que os dois subam a árvore e eles desamarrem e recolham a corda para não deixar vestígios. Espera os dois. E partir do momento em que se encaram, cada um dos outros dois empoleirado a um galho próximo do menino mais novo, e assentem que prosseguirão; estabelecem um pacto de sigilo absoluto de ações e vozes. Orientar-se estando dentro da copa da árvore é o mais parecido possível a um labirinto. O escuro camufla os corredores possíveis e cada desvio é mortal. Os meninos se encaminham em fila indiana, tendo por única diretriz subir sempre. Tateiam galhos mais sólidos e não se deixam abalar quando um que prometeu ser ascendente começa a curvar perigosamente rumo ao solo. Sentem mais de um inseto percorrer-lhes o corpo e, sempre em silêncio, alternam quem segura a mochila, que eles imaginam pesar uns quinze quilos. Por duas vezes atingem o topo da árvore mas em lugares longes do pano, a água cega a vista do céu tanto quanto as folhas cegam o caminho. A aposta é pegar o pano e entregar ao Getúlio na manhã seguinte. Ele disse que tinha amarrado lá e só quem fosse homem suficiente devolveria. Labirinto silencioso em que a mão de um esbarrar no pé do outro provoca arrepios indizíveis.

Frio dentro da árvore, um frio que venta e seca os três meninos.

O menino mais alto levava a mochila nas costas. O menino mais velho tem a ligeira impressão de já ter sentido aquela exata bifurcação de um galho ramificar em um mais resistente que retorcia solitário para a esquerda e a um mais fininho que subia e se emaranhava entre alguns mais grossos. Os calibres dos galhos retidos ainda nos dedos. O menino mais novo ignora essa mesma impressão escolhendo, como fez da outra vez, o galho solitário. E os três começam a sentir através do grito do menino mais alto, que é atingido por uma fruta. Os dois outros  chiam para que se cale, o que não dura muito são silenciados pelo ruído de muitíssimas frutas chocando contra galhos. É o início. O que significa ser o início de os galhos chicotearem o ar, conforme a árvore à mercê do frêmito que a terra provoca ao se deslocar minusculamente para a esquerda e a direita – qual um joão-bobo – tenta adaptar-se à nova condição drapejando violentamente para os dois lados. Agarrados ao galho que os guia, os meninos sentem os tremores se intensificarem e só se preocupam em não ser atingidos na cabeça por algum fruto descolado de seu galho. Tentam atingir o tronco de onde o galho em que estavam partia, tendo abandonado o cuidado em silenciar para não serem descobertos. Aos gritos rastreiam a posição uns dos outros apenas para manter a fila indiana. O menino mais novo informar que perdeu o percurso e não lembra qual é o rumo do tronco da árvore assusta menos do que os solavancos que a árvore dá, como se estivesse prestes a decolar do chão a que as raízes primitivamente a prenderam.

Apenas se agarram querendo proteger-se do vento que castiga essa árvore indecisa sobre se tomba de uma vez ou se ainda há tempo de se erguer antes do fim. E assim como a árvore, resistem a se dobrar. Num último impulso, cada um por conta própria desiste do tronco da árvore e enlaça os braços ao galho mesmo em que se apoiavam. Os olhos fechados, as unhas ferindo a madeira a despeito da árvore pendular. Apesar de não se molhar ali dentro, sempre dá para ouvir o barulho que as gotas fazem ao acertar a copa da árvore, e um segundo antes de perceberem que acabou notam que as gotas se calaram por fim. Um grita de alívio, o outro pede que lhe passem a mochila para ele pegar alguma comida e o outro sorri antes de dizer que devem continuar.

Continuam apesar dos muitos tremores a que a árvore ainda os submeteriam. Só desistem quando ao pôr a cabeça para fora da copa da árvore pela terceira vez percebem que já é dia e que neste dia a cidade acordou devastada. Os vergalhões de concreto expostos tem a forma de mãos de náufragos saindo do mar para pedir ajuda. Não veem rachadura em nada, apenas recortes nem sempre retilíneos nas silhuetas do que se acostumaram a chamar de cidade. O que tinha mais de três andares não resistiu, do resto sobrou alguma janela, um móvel soterrado. E sair do labirinto é tão difícil quanto entrar. Agora a orientação era descendente e encontraram saídas falsas e corredores que davam a lugar nenhum. A urgência inclusive faz com que encontrassem o pano azul, amarrado à ponta de um galho que nitidamente os levaria ao térreo. O menino mais alto pergunta qual é o tamanho da corda e conseguem descer dando um salto arriscado: ao chegar ao fim da corda, um pulo pouco mais de três metros separa cada menino do solo arrasado. O terreno baldio está intacto. A árvore, meio inclinada para a esquerda. Os pássaros brancos sobrevoam ali perto.

Parece que uma baleia engoliu a cidade e que somos as coisas vivas no estômago dela
Eu falei que a gente conseguia
Cala a boca, cara
Conseguimos, não conseguimos?
Que sorte a nossa, hein
É melhor ir ver o que sobrou
Não tenho coragem, vai que os pais não estão lá
Quer ficar na dúvida?
Eu não
Vamos lá
Acho melhor não
Voto vencido, cara.

Cada passo dos meninos na cidade ecoam porque as coisas se cansaram de despencar uma sobre as outras e resolveram recolher-se, só há silêncio e os meninos preferem a visão do todo que tiveram lá da árvore, por isso vão tão desatentos aos detalhes. Por isso e por talvez já saber que se a rua deles já está em ruínas a partir dali, provavelmente não terá conservado as casas lá do final - quem dirá os prédios mais adiante. Andam só olhando para frente e ocasionalmente se desviam, trombam uns com os outros ou, se levam um pisão no pé, apenas mudam de direção. O menino mais novo corre na frente para desbravar. A cidade é seu horizonte limpo, com pássaros aqui e ali perscrutando possibilidades de comida. Só o que não lhes deixa ver isso de uma vez só são as enormes pilhas de pedaços esparsos de cimento e ferragens e argamassa e madeira e automóveis e asfalto e água que se acumulam em certos pontos; arremedos de civilização dificultando a vista. Até as faíscas não se animam ao esforço de produzir ruído, esse papel quem cumpre são só os passos e o movimento das pálpebras descrentes dos meninos. Gestos contidos e passos apressados. O lugar em que devia estar o prédio de dois dos meninos ser agora um buraco os fez precipitar uma piada sobre a rua estar banguela. O menino mais alto represa um soluço que não quer que os outros dois, impassíveis em choque, presenciem. Acabou privacidade, o que tentam esconder fica escancarado. Dormem todo este dia em um lugar confortável que encontram. À noite saem sob a lua que permanece tachinha a uma esquina do céu: sob esta iluminação indecisa escalam uns promontórios de ruínas até se dar conta de que sobrou pouco ali, nenhuma edificação a não ser uma casinha amarela sem telhado. O menino mais velho a frente do grupo, aproximam-se devagar: os desmoronamentos são iminentes, podem acontecer com qualquer coisa em qualquer lugar. Com um banquinho inverossímil em pé fixo do lado direito da porta azul. Um bloco cúbico que é uma ilha no mar de escombros. Pena que não conseguem arrombar a porta, que não dá pra entrar pelo tubo do exaustor.


*esse conto eu escrevi a partir da foto tirada 
pela Ferdi Mendonça, a quem só posso agradecer

1 contos de réis:

Anônimo disse...

Nem Getúlio, nem a natureza tiveram força e coragem para explorar a casa amarela da porta azul.

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