quinta-feira, 22 de julho de 2010

Lotta Dead Birds.

A dor fisgou pela primeira vez ao envolver a alavanca de câmbio. Um tique nevrálgico sei lá o quê me impedindo de abrir e fechar a mão. Era a terceira curva já e, além do morro me impedir de saber se havia alguém mais a frente lá no final da curva, era meio crítico que eu reduzisse ali. Taxas elevadas de incidência de óbito, o jornal sempre xingava disso aquela região do percurso. As faixas de metal posicionadas a beira da estrada estarem comidas no ponto em que os carros derrapavam pela tangente daquela curva, era dizer o suficiente em relação à velocidade de que eu precisava naquele instante. Sem falar nos deslizamentos recorrentes. Abordei rápido demais; a Marta, mesmo dormindo, espremeu o assento entre os dedos e numa tempestade de começo de receio sonâmbulo murmurou meu nome. Um clique nos ossos, nos nervos ou nos músculos era a distância entre minha mão enovelar-se à bolinha da marcha e o fundo do penhasco; clique imperceptível como uma arma, mas melhor. No fim das contas, quem afinal se dignaria a procurar de novo os arredores fundos das sete curvas? O Departamento não se preocupa mais em substituir o metal roído - sai caro -, por isso não dava pra avaliar de acidentes novos por meio da conservação ou não dos sinais de trânsito da beira da estrada. Não bebo nem nada disso e mesmo assim, na câmera lenta de decidir às pressas, o céu deu toda a pinta de se encolher, resumido a um único ponto, de escape. Sem nuvens, a escuridão que meus faróis esgarçavam começava a depositar sua caspa sobre o capô. Desliguei os limpadores de para-brisa em prol do aquecedor. Aquelas palhetas dançantes na minha frente  embaçavam mais a visão que a neblina; talvez eu relevasse entrar rápido demais na curva porque a mão esquerda ainda funcionava, e eu precisava guiar o carro; fosse na velocidade que fosse, não dava pra perder pro penhasco a frente. No que o volante já estava ao máximo esterçado, minha mulher recém-acordou, abafando-se num grito arfante. Nem perguntou nada, só se agarrou ainda mais ao próprio banco e entre murmúrios alternava meu nome e uma oração aí. Desavisados nós seis. Os do carro, e o de fora: um pássaro que, fendendo o ar horizontal, atravessou com o bico o meu para-brisa. A força suficiente com que estilhaçou o vidro; a luz da lua se infiltrando qual leite pelas rachaduras recentes, enquanto preto de penas reluzentes se debatia ansiando por se libertar. Não liguei pro desespero absorto da Marta; ou era eu ou a curva. Pé suspenso a espera para pisar na embreagem a qualquer sinal dos dedos por enquanto inertes rastejar em direção à alavanca. Pé embaixo no acelerador porque a curva era em descida e o asfalto não ia tragar ninguém que eu carregava. Sei que é pouca a diferença, mas perder o controle estava fora de cogitação. O silêncio no carro ser absoluto - esfacelado às vezes por ronco de um dos meninos ou pelo flapflap eventual do pássaro, ainda vivo - se opunha aos caminhões atroando nas outras seis curvas, acima e abaixo de mim. O ziguezague que o Departamento quis tornar um pouco sádico e bastante incontornável, fugiu à minha atenção, o menino do meio chorava.
Querida, dá uma mamadeira pra ele - Não virei a cabeça, a ordem aflorou mecanicamente audível demais
Não quero dedê, papa, eu tô com medo - Marta esfregando os olhos incrédulos de quem acaba de acordar e se depara
Medo de quê, filho?
Dá um brinquedo pra ele, então - Virei a cabeça pra ver as lágrimas de crocodilo do menino querendo atenção e voltei rápido à atenção na pista antes que o ponto de escape passasse direto pelo carro
Reza pro papai do céu
O pássaro forçar a cabeça pra fora do vidro em que se prendera: sem resultado, o corpo continuava pendurado do pescoço dele
Não quero, eu quero descer
Cala a boca, filho
Não fala assim com o menino
Me dá a mão? - percorria e as vozes eram distantes e indistintas
Macedo, que que custa prestar atenção no que seu filho está pedindo?
Não me chama assim porra, já falei
Aguenta aí um pouquinho, o papai precisa se concentrar
Isso mesmo, calem a boca por favor, preciso me concentrar - desencargo de consciência: quase no fim, joguei pra trás um boneco que achei no painel do carro - bonitão e musculoso, só de sunga e equipamento de mergulho, devidamente batizado com o nome que veio na caixa,  Scubaduba - que o menino recolheu, choramingou ganindo por um tempo e depois se resignou a brincar dublando aventuras submarinas.
A neblina se solidificar dava às penas do pássaro um tom de orvalho, quase lúgubre em sua refração esmaecida, furta-cor.
Aquela era minha chance, mentalizei um filme em que o cara lá não conseguia fazer isso e ri dele por dentro. Ia corrigindo o trajeto das rodas bem de leve e quase lá - consegui mesmo aquela curva, com a mão direita travada e a cento e quarenta por hora - topamos adiante com um tronco que tinha tombado. Uma muralha que só vi quando já estava encima. Transversal à estrada, a nossa faixa obstruída pela copa da antiga árvore. Copa de muitos galhos entrando cada um de uma vez e em cada direção pelo outro lado do para-brisas e dos vidros da lateral direita. Derrapei - culpa de desviar da árvore, o veículo eu controlei -; um percurso diagonal curto antes do choque.
O airbag da Marta falhou em ser acionado. Mesmo na hora do impacto, ela não parou de rezar. Eu não vi passar o desfile do processo inteiro, a vi em um segundo, ela estava de mãos juntas, os lábios movendo rápido; no próximo um galho enorme já separara a cabeça do tronco. Um roxo na altura dos braços e um filete - A Marta sempre bastante discreta - de sangue escorria pelo branco da blusa sem mangas, do pescoço, singrava as costelas até vir manchar o banco; ao ver a poça comedida concluí que era grave, não tinha volta aquele transbordamento.
Dos meninos, o que ficou melhor parado na situação toda foi justo o que eu não consegui salvar; o que ficou encolhido, perninhas encima do banco, abraçando o boneco que eu atirei. Suponho que essa posição refugiada dele foi preservada depois da segunda batida. O menino da esquerda eu tirei do carro - a porta emperrada  pelo acidente sem me deixar socorrer com a urgência que me governava - e lancei num impulso ao acostamento, onde, ralado, ficou bem, embora comigo. O peito do menino da direita do banco um galho atingiu e desacordado talvez fosse insensível ao carro que a toda também venceu a curva para se esborrachar ali. Sim, duas ferragens embrenhadas na madeira. Abandonei lá, não antes de olhar uma fresta intacta do carro e ver o menino lá - se formou um tipo de esconderijo - abraçando os joelhos, meio que embalando a si próprio, queria um sono já que não dava pra sair de lá e acordar em algum lugar a que os pés-de-pato do boneco conduziriam. Eu - obviamente - consegui sair a tempo de evitar a explosão das carrocerias; nem o frio do asfalto conseguiu acalmar os ânimos do combustível que vazava dos dois tanques escancarados, e aí houve faísca; bem, o resto vocês sabem ou adivinham. Eu já longe, eu e um menino. Venci, bem ou mal; a custo de quantas baixas é hipócrita perguntar.


Pela fresta intacta também enxerguei que o pássaro ainda batia asas, fincado, quando virei as costas pro ocorrido e as lágrimas do meu filho se misturaram à poeira no asfalto.

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