quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O reverso percorrido do trajeto*

Talvez ela mesmo tenha se convertido em poeira, Mia Couto

O disfarce da tosse discreta é a manga da camisa e um risinho para informar aos passantes que a saúde está bem. Gestos pouco abrangentes, sentado. Um caixote de frutas, madeira emborcada sobre os padrões das pedras revestimento. Cego de propósito a um sol diagonal incidindo na lâmina de uma marquise. Pedras pretas, brancas e roxas se entrelaçam num abstrato que Jota insistia em decifrar desde que pede dinheiro ali, há dez anos. O rosto apertado de concentração. A cabeça não move: do alto do corpo sentado no caixote, rastreia com os olhos: ora esse traçado da calçada, ora umas pernas que já iam longe quando ele acabava de delinear, ora o sinuoso trajeto de um veículo no asfalto em frente. O limpo do céu era bonito mesmo que fora do campo de visão; não estava do jeito que o Jota gosta. Mas já convidava ao bom humor; sem nuvens, até mendigar fica mais agradável. Uma mão envolvendo o buraco no algodão de uma calça, à altura do joelho; costas curvadas, a barba que cresce ao redor de um sorriso desabrido. As rugas da outra mão, cuja palma virada para cima: linhas encobertas por uma ou outra moeda que os dedos semi-tampando deixam entrever. Nunca em voz alta, as moedas caem em sua mão sem tilintar e justo por não pedir é que a sexta-feira demora mais a chegar. A barba entrecerra a expressão de. Ao lado de uma pilha de discos de vinil, cujo vendedor dormia longos períodos e acordava resmungando de receio de terem levado a mercadoria toda, a mão estendida enrugada concorre com a voz alta ofertando raridades da época áurea do bolachão, os bons tempos da música de verdade. O chão trepida à passagem de um ônibus, que sufoca os apelos dos dois. O do Jota é o silêncio; a mão em concha do braço estendido é o que há pra dizer, mas as pessoas não sabem que ele faz isso sem precisar. Não que ele tenha dinheiro, não que ele precise. A pessoa mais calma da cidade; se levanta e vai à banca comprar algumas balas de hortelã que são sua compulsão depois de ter parado de fumar, volta semelhante a um desses cachorros que sempre acaricia, olha ao redor antes de sentar e começa a pedir.  O cara dos discos coça um canto do rosto esquivando-se do desejo fugidio de que um menino que passa correndo em frente a ele caia e abra a cabeça. A mãe grita de longe para recuperá-lo, retoma a mão do menino e se detém diante dos discos com algum interesse de mostrá-los a ele: que só puxa o braço da mãe, querendo sair em disparada de novo. A mulher pergunta por Lupicínio Rodrigues e Lamartine Babo, dá conversa por encerrada depois de ouvir os preços. O menino quer verificar se Jota está vivo ou é uma estátua: cutuca o braço estendido e derruba as poucas moedas aninhadas na palma. Aproveitando a curiosidade do menino, Jota agarra seu ombro e dá um grito ao qual o susto do menino responde espavorido. A mãe ri enquanto tem sua perna abraçada pelo filho lívido e atravessa a rua. O vendedor enrola a ponta dos bigodes e para abafar o riso culpa seu vizinho de calçada pela perda da venda. Quinta-feira. Um lapso de deixar de pedir: a mão escava o pano de um bolso só pelo prazer de sentir que o dinheiro já está lá. Não só o da passagem de ônibus, o do café também; as coisas no aeroporto custam caro. Não que ele precise das coisas do aeroporto que não são os aviões em suas trajetórias de abelha beijar uma flor e se retrair trôpega, mal conseguindo alçar vôo se não for graças ao nariz. O dinheiro já dá pra ir, ficar lá sentado admirando através das grandes vidraças que dão para o pátio em que manobram e voltar. Jota resolve finalizar o dia por ali que amanhã é cedo. Se despede do vendedor, de quem bem ou mal é amigo, com a mão direita; a esquerda já depositou no bolso as moedas catadas do chão e agora segura o caixote de frutas por uma alça. Afasta-se fitando os próprios pés. Mais ou menos quatro horas da tarde, o que João precisa ir à esquina do quarteirão e olhar no termômetro erigido numa rua transversal pra saber. O caminho é curto até a rua pouco frequentada e paralela a essa em que ele esconde os papelões e lençóis esparsos com que se cobre. E com que cobre retalhos de folhas soltas de National Geographic espalhadas, o jeito que ele encontrou de ninguém identificar a importância daquelas páginas de leitura noturna e roubá-las por maldade. Pirâmides no Camboja, avanços tecnológicos, ruínas romanas em que pessoas moram, o prédio mais alto do mundo, tribos incógnitas, populações soviéticas que as nuvens de radiação mal-formaram, ailuromancia: uma coleção que ele sonha que os aviões tornam possível. Antes de se deitar de vez, sem esquecer das recomendações maternas contra engasgos, chupa uma das balas que sobraram do dia. Posiciona o caixote onde não possam reparar na sua utilidade e escondido folheia páginas que já decorou. Uma vez não soube responder a um namorado antigo que lhe perguntou por que guardar dinheiro para ir ao aeroporto às sextas e não guardar dinheiro para comprar revistas novas; apenas se ergueu perplexo de onde se deitavam, recolheu os cacos da revista e vagou à noite; não sem omitir ao homem que ou fosse embora ou ele iria. Foi um bom namorado, que Jota às gostava de imaginar enxerido. Opina que as pessoas em geral são. Rua estreita e mal-iluminada só permite ao Jota ler até que escureça; por não querer mudar do seu lugar silencioso e deserto, por misantropia, fica confinado a repassar as viagens mirabolantes de repórteres aventureiros só até o sol abandonar a fresta que os dois prédios altos entre os quais dorme deixam. Tira a camisa e guarda no caixote, a noite quente permite que ele vá mais limpo ao compromisso semanal do dia seguinte.


Jota é mais rigoroso com o horário do ônibus que o próprio motorista. Tem que ser cedo, almoçar é impossível no aeroporto: o dinheiro dá, sobra, mas não é tanta folga assim. O cobrador é novo, por isso o olhar torto que o antigo substituíra lá pela terceira quarta viagem por alguma conversa. Os bancos saem da rodoviária todos misteriosamente sempre ocupados e vão esvaziando ao longo do percurso. Mas Jota sempre prefere ir em pé e de olhos fechados por não querer estragar logo ali no início as surpresas que grandes vidraças escondem. Se alguém pede licença ou puxa assunto, ele até abre os olhos, mas exclusivamente para cravá-los nos do interlocutor, o que assusta algumas pessoas mais que a barba e as roupas e os papéis amarfanhados sob o puído do algodão da manga da camisa juntos. O desvio das pessoas desbasta uma clareira ao redor de Jota, ainda mais se ele levar o pão esfarelento que o padeiro sempre reserva, a um preço mais baixo. Na vez em que chamou o namorado, se sentarem ao fundo do ônibus, envoltos apenas em lataria opaca e prolongarem os beijos para que Jota não precisasse antecipar o céu arregaçou uma clareira ainda maior, cercada por xingamentos e agressões que terminaram por expulsá-los. Fizeram o resto do caminho a pé, com Jota atento às formas na calçada para evitar o céu que aquela sexta-feira nublada lhe vedaria. Tinha um assovio combinado com cobrador antigo para quando chegassem à parada do aeroporto. Desta vez abre uma fresta mínima entre as pálpebras, enxerga um descampado entrecortado por fios de alta tensão, concessionárias de veículos e depois de um estacionamento quase sem-fim vê uma fileira de taxis e os pés automaticamente se encaminham à porta traseira. No guichê de cobrança do estacionamento, na florista, no balcão de aluguel de carros, na farmácia, nos balcões de companhias aéreas: as pessoas que atendem o reconhecem e embora nem todas cumprimentem Jota fica satisfeito com os cumprimentos que a sua assiduidade de décadas angaria até hoje. Presenciou reformas no saguão e trocas de elevador. Mas o céu manchado e o sol eram assíduos e intactos. A escada rolante reteve uma mancha que ninguém se lembrou de tirar: durante um protesto dos operadores de vôo, policiais empurraram alguém para formar uma linha que a marcha dos revoltados não pudesse ultrapassar. A pessoa tropeçou nas que desviam da porrada dos policiais e caiu da escada: ao aterrissar no andar de baixo os membros formavam ângulos imprevistos e uma fratura expôs uma mancha que se deixou instalar em uma junta dos degraus que as pessoas não limpam. Mancha em que Jota sempre identifica um rosto ao subir ao mezanino. Escolhe qualquer cafeteria: os cafés têm sempre o mesmo gosto de água suja e ele vem por causa das janelas. Não se importa com o ruído que as moedas que reuniu em saco plástico fazem ao chocarem contra o mármore redondo do tampo da mesinha. Ritualístico, conta os centavos sem esconder que já conhece o resultado. Pede o café (americano, curto) e algumas balas de hortelã. Ritualisticamente, sentado e de costas toma a xícara em goles de saborear a vitória semanal. E os passos com que aproxima seu corpo, cabeça baixa, do janelão; emoldurando os aviões com frisos brancos são passos de recém-nascido trêmulo com que vai sorvendo a paisagem áspera do concreto, aqui uma escada desconexa entre uma listra amarela no chão e uma nuvem a que Jota atribui um formato que logo identifica como tendo sido sugerido por um objeto à direita da escada: uma pessoa com protetores de ouvido que carregava sinalizadores laranja. E então chega mais perto do parapeito tubular, a curiosidade descortina um horizonte que não é de edifícios; na hora da semana em que Jota aceita o céu. Aceita tudo de uma vez. O namorado não entendeu essa aceitação e torceu-lhe o braço e trazendo-o mais pra perto, quase cuspindo o rosto em dúvida dos motivos daquilo, vocifera de ciúmes. Ao tentar e conseguir reduzi-lo ao frio do chão do aeroporto e submetê-lo a uma sessão de chutes para que Jota, abandonado lá emborcado em posição fetal, aprendesse. Jota tem um sorriso no canto da boca porque o gosto que vem ao olhar o céu é do sangue, posteriormente limpo, com que manchou o mezanino. Gosto de sangue e arrepio de vastidão. As mãos extraem filas quilométricas de balas de hortelã dos bolsos. Aferrado ao balaústre branco que impede os suicidas de se atirar sob as rodas de um desses carrinhos que transportam malas para os terminais ou comida para os aviões, ele afasta os olhos da terra para pousá-los nas nuvens que o namorado teve problemas em identificar. Decide ir embora e vai; conforme cruza o corredor rumo à parada, responde a uma onda de mãos em despedida baixando os olhos, restringindo-os ao chão.


E se afasta sob um poente tortuoso a que vira as costas, protegido pela lataria do ônibus.


*mais um conto para o qual a linda Ferdi Mendonça contribuiu com uma foto.

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