quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Dez centavos.



O corcunda que sabe como deita.

Ditado popular

Haurimento deliberadamente provisório.  Amarrando um cadarço como gostava de fazer, corpo curvado meio escondido atrás do balcão, e procurava um original deixado na semana anterior por alguém cujo semblante fugia. Esta posição, em que gastava a maior parte do dia, agradava porque permitia limpar as impressões digitais das fotos três por quatro com alguma ponta do jaleco menos manchada de tinta, sem incômodo. Quase bateu a cabeça no balcão quando a voz que o chamou era a mesma do telefone, ou seja, a voz que não condizia com a figura conjecturada a partir da voz sonhada. A mulher não era a mesma, não obstante. Ao que parece, todas as duas ou três mulheres que reincidiam em ser inferidas da matéria do sonho por ele tinham jeito de ter a mesma voz e sotaque e vocabulário, sonhados mas diferenciáveis, atribuíveis a pessoas distintas. Essa tinha essa voz, esse sotaque, pastas de documentos que queria fotocopiados para aquela tarde. Tanto o tailleur acinturado quanto o tom pomposo com que dava a impressão de afavelmente querer mandar sugeriam advocacia, à revelia da noção dele de que quem tirava cópias dos documentos para as repartições públicas eram estagiários, o que os rebaixava a ser menos que operadores de fotocopiadoras. Apesar de o patrão não estar na loja, e talvez por isso mesmo, prontamente atendeu. Limpando os dedos no jaleco, não escondeu o bocejo com a mão em frente à boca. A boca dela crispou-se visivelmente contrariada e largou de altura considerável o montante das pastas sobre a madeira do balcão. O estalo acordou de vez.
 O que deseja?
Preciso disso. Três vias encadernadas, às três da tarde – na pressa ela percebeu que os documentos estavam fora da ordem, começa a espalhá-los ao longo do balcão; conforme identifica o número do requerimento e data de expedição forma uma pilha à esquerda. Ele mexe quase imperceptivelmente nos cartões postais que o patrão posicionou no balcão pra alavancar o faturamento, já decorou todas as paisagens e até as mensagens que escreveria em cada cartão postal, mas ainda assim: sempre é bom por o dedo em lugares cujo acesso o salário vedaria – eu passo aqui pra recolher.
Tudo bem. Pagamento agora ou na hora da entrega?
Na entrega. Quero também revelar uma foto, fica pronto até a hora de buscar as cópias?
Enquanto confirma que é possível sim entregar os serviços no prazo que ela impôs, ele pensou nos esparsas serviços encomendados até aquela hora do dia. Uma certidão de óbito, um atestado médico, uma carteira de motorista e um passaporte de que um bigodudo pediu duas vias. Tudo mixaria que mesmo assim é provável que alguém se interessasse em roubar. Se a boca banguela do caixa registrava vinte e três reais, ganhos em quatro horas e meia de funcionamento, a culpa era do homem de boina que pedira para ele fotocopiar cento e vinte vezes um mesmo pedaço de papel de jornal rasgado de qualquer jeito. Sem foto, o papel tinha um número de telefone rabiscado com caneta grossa. Uma notícia com intenção de direcionar a uma provável reportagem maior dentro do jornal, que contava em poucas palavras a história de um homem que sabia de um irmão gêmeo seu que morrera durante o parto. O que esse homem, órfão de pai e mãe desde que nascera, não sabia é de que na verdade a mãe carregara três meninos na barriga. A mãe frustrou-se com a morte de um deles e resolveu manter só um, dois seriam uma recordação amarga demais da morte do terceiro. Por isso entregara um dos bebês que sobreviveu às freiras para adoção. O bebê que deixou compulsoriamente a divisão de proteção ao menor da Santa Casa aos dezoito anos era o homem que as cento e vinte cópias disseminariam em breve bairro afora. O homem de boina afirmou veemente que devia ser ele o irmão que havia sido criado por pais, que era seu dever por ser cidadão encontrar o seu irmão gêmeo que fora abandonado no mundo. Embora os pais o tivessem criado muito bem, nunca mencionaram nada a respeito desse irmão dado à adoção. O homem da boina acreditava piamente em que esconderam a verdade em prol de preservar a formação de sua identidade.
Ao ouvir do homem da boina que quer as cópias rápido, ele apenas assente com a cabeça. Justo ele assente e justo nele nada é comovido diante daquela história, por mais que não guardasse boas recordações do orfanato. Lá dentro era proibido usar essa palavra, por isso ele a repetia com tanto prazer, mastigando cada vogal, escarafunchada para trazer à tona mais do gosto inebriante. Bater não batiam, mas o abuso sexual entre internos – e entre internos e tutores - era freqüente e respeitador de uma hierarquia clara, ligada à força e ao desenvolvimento físico do menor enclausurado. O rateio da comida escassa também respeitava essa hierarquia. Brinquedos só chegavam a ele já sem um olho, com uma roda empenada.  A melhor parte era quando no meio da noite se sob a sua cama de aço escondia acompanhado de seu lençol. Com um espelhinho de maquiagem roubado a uma das mães que quase o levaram dali, canaliza a luz da lua para uns recortes de jornal que encontrava vasculhando o lixo. Com cuidado tentava recortar com os dedos os rostos nas fotos; os equiparava, viessem eles da coluna social ou do caderno da polícia, raramente do obituário. Quem sabe um sorriso estampado ou mãos algemadas em cima de uma cabeça não encerravam uma resposta sobre o cárcere? Ficou feliz de ficar velho ao descobrir que a estadia ali tinha prazo de validade. Ao sair de lá no dia do seu décimo oitavo aniversário, expulso por exceder o limite de idade de permanência, sua sorte grande foi o velho com cara de safado, o qual lhe oferecera esse emprego no cubículo em que agora trabalhava. Ainda bem que até agora o patrão tentara nada. A bem da verdade, nunca entendeu as razões de ter nascido já confinado e sem pais. E não atentaria para elas até depois de o homem de boina recolher o pedido. A diretriz do patrão no caso de grandes pedidos é sempre entregar dez por cento a menos das cópias, ninguém contaria mesmo. O homem prendeu as cento e dez folhas de papel entre o braço e o dorso, depois de um suspiro curto admitiu que colaria cada cópia daquelas em um poste, quem sabe alguém se prontificasse a ser seu irmão. Saiu da loja num passo vagaroso de quem talvez se incomodasse com uma verdade doloridamente improvável.
Obrigado.
Volte sempre e boa sorte – poucas certezas sobre se ele disfarçava ou não ter entendido a extensa lengalenga do revolucionário de jaqueta.
Tenho certeza de que é meu irmão e de que as forças do produtivas impetraram mais uma injustiça que deve ser reparada.
Ele aproveitou a saída do homem para sentar-se a um banquinho baixo e amarrar um cadarço e um bocejo cavernoso da papelaria/loja de fotografia/fotocopiadora em que trabalhava escarneceu do vazio ao redor. A altura do banquinho só deixava à mostra o topo da cabeça dele por trás do balcão. Esfregou o polegar no dedo médio, limpando a tinta na borda do jaleco. Procurando em vão por serviço deixado para trás, listar mentalmente as categorias provocou a mudança de uma foto de coluna. Um arranhão na ponta de um dos dedos denunciou a ponta de um papel em uma das prateleiras sob o balcão que usava para acumular o serviço.  Ao perceber que esquecera uma cópia das do homem de boina, chegou a pensar em sair da loja, deixando-a ainda mais deserta para ir devolver mas a indolência venceu. Reordenou algumas outras fotos, as quais transferiu para a região das que seriam levadas para casa no dia para ser guardados no túmulo definitivo da caixa de sapatos sob a cama. Caixa esta abarrotada das caras anônimas que ele gostava de imaginar que sorriam para ele. Pela primeira vez indagou por que não tirar uma foto sua para pôr ali, tinha a máquina fotográfica da loja à sua disposição. Depois talvez, pensa enquanto tenta abaixar a ponte levadiça que separa a memória de curto prazo da de longo prazo. Contudo, a dor do arranhão é mais convincente do que o atiçamento dos feixes neuronais e o trouxe de volta, a tempo de flagrar pela vitrine duas mulheres diferentes – diferentes também das sonhadas - caminhando com gestos idênticos – idênticos aos presumidos da mulher que ele presume a partir da voz no telefone; não obstante um raio de sol retalhe as maçãs do rosto de uma das duas da calçada para que se pareça a uma das ausentes do sonho. Sentou de novo no banquinho concentrado semi-esquecido do papel retido entre os dedos.
E só notou ao começar a ler pela terceira vez. Tendo notado, leu tantas vezes que quase chega ao ponto de desbotar os sentidos das frases da notícia; decorou tudo que estava escrito no papel após exaustivas passadas de vista em que forçou a atenção a um grau que o trabalho, ou qualquer outra atividade, estava longe de lhe exigir. Ao imaginar a árvore de possibilidades que a notícia acarreta, sem considerar que seria meio difícil escreverem uma notícia sobre ele sem consultá-lo ou avisá-lo, descortina variedades incríveis de fama, de detalhes meticulosamente previstos a uma luz enganosa. E ainda mais enganosa porque, se as feições dele e do homem da boina não coincidem, um dos dois deve estar errado. Hesitou em voltar ao seu apartamento; uma caixa de sapatos cuja janela colada a um muro erguido de tal maneira que só permitia divisar dentro do cemitério rostos das pessoas vagando por entre as lápides, mais do que ventilar abafa e serve mesmo para canalizar a chuva rumo ao colchão e aos poucos móveis. Rostos e um ou outro pássaro, pousando nas flores que o pesar vigente nestes rostos levava para depositar. Hesitou em deixar ali o que faltava de mês no fim do salário e de vida no fim dos escombros de aspirações; num ímpeto de ousadia vai ao cúmulo de impor ao balcão o comparecimento de todo o dinheiro que tem no bolso, uma moeda de dez centavos que fez girar com um peteleco melancólico dos dedos. Desejou a sua foto três por quatro ampliada numa capa de revista, a oportunidade de ouro. E viu a chance de, ao largar a loja, ao virar celebridade, outros o copiarem. Entretanto, para sermos sinceros, só dá para afirmar que depois de desmanchar o feitiço que lhe emasculou o rosto por quase três segundos, ele ouviu o sininho anunciador da entrada de alguém. E ficou satisfeito por conseguir mais serviço naquele dia tão magro - não mais que os outros - de receita. O pedido de cópia do atestado de óbito foi simultâneo à mão em torno da folha de papel, tornando-o uma bolota antes de encaminhá-lo à lixeira.
*Conto escrito em resposta a um desafio que lancei ao Felipe Carriço. Um conto com a palavra fotocopiadora. 
Blog dele: http://naomefazpensar.wordpress.com
Twitter dele: @carrico

1 contos de réis:

Anônimo disse...

Insistentemente vamos copiando e sendo copiados. Vamos perdendo a resolução, as cores, os traços e cada vez mais temos menos de nós mesmos, irreconhecíveis.

Antes ser apenas o operador de fotocópia do que uma cópia em si.

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