segunda-feira, 12 de julho de 2010

Fotonovela





A Berenice não foi a primeira pessoa de quem fui personagem: Me dublaram aos dezesseis anos. No dia em que preferi sair de casa a continuar vegetando, encontrei no chão um panfleto que me narrava, grampeei junto com a foto e os dois apareceram aqui, dentro dentro de um livro que enviaram:
         1. O menino olhar a lua e, acho, pensar em distância. Num átimo de raiva destacar uma flor das outras, querer jogá-la no chão. Certeza que ele e os irmãos moram com a mãe apinhados. Divisar na multidão os olhos do pai. Procurá-lo entre algumas poucas alternativas. Morreu, largou a família quando avisaram que viria um quinto filho. Ou os dois. Ou foi largado pela família enquanto dormia bêbado demais para reparar.
         Espaço aberto, bastante gente e ainda assim. Os olhos percorrer vários dos lugares. Parecer que ninguém mais quer comprar rosas. Os olhos mais para curiosos que para desanimados. O buquê cheio: mulher rir de receber, velhos não ter mais lapela, só risada sem dentes, essa música ser frevo não tango.
         Talvez nem ele queira descobrir por quê, cabisbaixo, agarrado a um estertor de orgulho. Muita gente sim, mas, não sei se de vergonha pelo braço, aborda constrangido. Difícil mesmo saber dessa distância se não ter a parte atrapalha ou ajuda ele a vender.
         Crianças de mão dadas com os pais, pessoas sozinhas que procuram pouco; cerveja, pipoca, maconha, banheiros químicos, consolo, formas em nuvens.
         Cansado, parar um pouco, apoiar o buquê em um banco. É nítido que ele não é pidão, nos gestos dele dá para ver que as palavras que ele usa não sãopara dar pena. Os outros parecer tão mais invisíveis quanto mais o ignoram. Aproveito e conto, dezoitos rosas a ser vendidas antes da lua se pôr. Uma velha comprar uma transigindo, uma mulher com uma máquina de foto comprar outra. Agora dezesseis.
         Esse tipo de evento, de graça e aqui, atrai sempre mais ou menos o mesmo tipo de gente. Não pode faltar barulho, cheiro de queimado e palhaços em pernas de pau. O menino se orientar bem no meio de tudo, sem estranhar. Quase nadar entre gente girando.
         Trançando por entre dançarinas incansáveis, chegar aonde ficam uns casais se engalfinhando; não querem intrusos, é mais difícil sim, mas é bem provável que apanhe em casa se não vender tudo. Se ainda fossem poemas, ou colares, ou a salvação, faria sentido passar sem ver, flores não se explica muito - comprar seria corriqueiro, num assomo de qualquer coisa.
         Ganir com o murro de um namorado ofendido e recuar quase perdendo o equilíbrio. Finalmente desistir. Corro gramado afora quando percebo que se afasta. Esbarrando nas pessoas, alcanço e ofereço uma carona que ele aceita sem perguntar para onde. É mais calado e gentil do que a primeira vista.
        Talvez a dificuldade em colocar o cinto de segurança, mas ele tem um ar meio de contrariado com a situação. Mostrar isso sem articular nenhum som, evitando chances de que eu puxe assunto.
         2. Carro já em movimento, descendo a avenida deserta.
         Aonde você quer ir?
        Meio assustado, murmura palavras que eu não entendo. Repito.
        - Aonde eu te deixo?
        - ...
         O momento de silêncio perturba, vou rodar a esmo pela cidade até ele se dignar a me dizer algo. Eu nervoso não paro de falar merda.
         - Tem noção que quando eu te vi ali no meio de tantas pessoas que servem para nada, você me chamou atenção de cara? Pois é, te achei bonito, educado, é ciente do seu lugar e do seu papel no contexto; é uma pena você ter jogado as rosas fora na hora de ir, eu compraria alguma de você. Só pra te ouvir dizer alguma coisa. Já te contei que quase nada me interessa mais? Não tenho tanto dinheiro, nem tantas coisas que eu queria ter, mas mesmo assim nada tem graça. Por isso que você me surpreendeu tanto, você é o que eu vim esperando esse tempo todo.
         Me enraivecendo com ele nem olhar pra mim, só ficar brincando com o acendedor de cigarro do carro. Nem sei se seria engraçado se ele queimasse a única mão que tem, mas sei que eu riria: um grito seria a grande chance de ouvir a voz dele ao invés da minha.
         - Eu sou poeta, escrevo e tal, mas não vivo disso. Meus pais até me deixaram dinheiro, mas eu gastei tudo com bobagens de cheirar. Por isso hoje em dia finjo que ir a eventos ditos culturais vai me tornar mais culto. Me aculturar de certa maneira. Porque é bem isso, não faço poema, só poesia, um dia talvez você também descubra o prazer em rimar os sentimentos com as palavras. É assim, simples, basta pontuar direito,
        -escorro meus dedos rosto dele abaixo. Estendo a mão e alcanço uma garrafa que deixo sempre no banco traseiro pra essas ocasiões. Recusa com a cabeça e continua sem falar
         - colocar os pronomes, você sabe o que é um pronome?, nos seus lugares devidos.
         Estaciono o carro num lugar sem gente a vista. Os gestos do meu amiguinho estão mais fluidos agora e ele ainda estátua de sal. Como se eu tivesse feito algo contra ele de propósito. E nem foi. O tapa soa ainda mais forte porque as janelas estão abertas e o concreto ecoa. Nem as lágrimas dele fazem barulho quando caem.
         Abro o short dele e seguro esse pau mole, ou será que é desse tamanho mesmo?, chego bem perto, e ele desvia do meu hálito ardido, beijo seu pescoço enquanto seguro o cotoco: ao perguntar o que ele quer que eu faça ele começa a chorar mais, calado sempre põe a mão na maçaneta, ao que hesito; é aí que perco a noite porque ele sai do carro e eu nem tenho vontade de seguir pra convencê-lo de nada.
         3. Voltando pra casa meio triste, não sei, uma sensação esquisita de por dois segundos quase achar que encontrei meu pai hoje. O dinheiro que eu ganhei não dá pro ônibus, talvez tenha sido isso, um cara ter adivinhado que eu tava sem dinheiro pra voltar pra casa e por isso me oferecer carona, foi o que me fez pensar que ele tinha me identificado e eu não a ele. A grande merda é que era um viado que só queria me comer. Não sei como vou explicar pra mãe porque tô chegando a essa hora sem as rosas e sem dinheiro. O foda é que por muito menos eu já apanharia: pode nem valer a pena voltar pra vida de bosta, não é como se eu fosse passar mais fome do que já passo e ter menos dinheiro do que já tenho se saísse de casa. Já não sou criança pra ficar apanhando, tendo que entregar meu dinheiro pros outros. É melhor mesmo ir embora como o meu pai, tenho certeza que ele é rico e come uma mulher gostosa diferente por dia. O problema é meu irmão, o Acácio, foda-se os outros, que ela minha mãe trata bem, mas ele ela trata pior do que ela metrata. Queria protegê-lo das merdas que acontecem comigo, impedir que viados deêm carona pra ele, essas coisas. Mas não sei se vale a pena voltar só por ele, talvez eu devia só procurar nosso pai e voltar com ele pra casa, a mãe não me bateria por isso, mesmo assim, é uma merda largar o muleque lá. Vou pra casa hoje, amanhã eu decido, vou ter que descer pra cá pra cidade de qualquer jeito. Às vezes eu me pergunto o que é maior, o silêncio dentro de mim ou o silêncio daqui. Quase chegando, mas eu sei que não vai ter ônibus a essa hora e não tem como eu ligar avisando. Pode ser a chance de ir embora, vão achar que eu desapareci, mas procurar ninguém vai mesmo, boca a menos, comida a mais, tá bom.
         Puta que pariu, PM’s. Melhor entrar por aqui e não ser visto, sei lá qual é o humor deles hoje.
         4. Esse carro tá bebendo bem mais do que deveria, mesmo assim vou em marcha lenta, acompanhando ele de longe, na calçada, esperando ele virar pra trás me procurando. Se ele fizer isso, eu finjo que passo direto só pra ele ficar com saudades.
         Mas é claro que eu não passo direto, dou uma ré e abro a porta do carro. É quase de manhã e a lua continua muito grande, ele anda sem olhá-la de novo, olha os próprios pés esbarrarem neles próprios. Se distrai: meio pensativo, tropeça num saco de lixo, quase bate num poste. Nem carros nem gente perto, a rua é mais muda que ele a essa hora, esquisito pensar em como me atrai esse tipo de gente.
         Não tirei tempo nem para avaliar o que ele me faz sentir, foi só vê-lo ali, sem um braço, roupa meio esfarrapada, mas sempre polido, uma polidez de resignação, que já quis algo. Às vezes ser impulsivo é insuportável. Não gosto dele, meu objetivo foi só alguém esta noite.
         Tem um cachorro seguindo o meu amorzinho agora. Cheirando o corpo dele procurando alguma coisa, elétrico ao redor, é justo o contrário do menino reflexivo caminhando contra a lua.
         Tremo enquanto apago um cigarro, sinto que vai demorar mais do que eu previ e é melhor não buzinar. Surgiram policiais há pouco e vêm nessa direção; vista de longe, ele já desvia, entra num vão entre dois prédios, mas acho difícil que abordem um menino desses.
         Retorna à calçada onde posso vê-lo, o passo acelerado de quem não fez nada. O latido cão-guia acompanha acelerando junto, e emergem da tentativa de fugir umas ordens de fique onde está, mão na parede, pés afastados.
         Os três começam a correr e o cachorro se recolheu a um canto, som de botas acertando o cimento e os gritos dos policiais contaminam o que tornava o silêncio tão bonito.
         - Para aí, seu muleque fedorento de merda,
        - nem adianta achar que vai conseguir correr mais que a gente,
        - nessa tu se fudeu
        E  coisas assim, acelero o carro até um pouco mais à frente e emparelho com menino, rodas tornadas brancas ao raspar o meio-fio.
         A distância entre ser espancado, e sei lá mais o quê, e se safar vai diminuindo. O carro em movimento, seus dedinhos se agarram à porta do carona, recém-aberta:
         - se quiser entrar vai ter que me dizer seu nome, querido.

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