quinta-feira, 15 de julho de 2010

A voz hasteada de outrem.

Lembro uma vez em que
 meu pai tentou falar comigo a respeito daquela caixa. 
Amílcar Bettega

João lustra sem nervosismo aquela pela décima quarta vez naquele dia. Os filmes pecam nisso, a lente de aumento cilíndrica presa ao crânio por um elástico seria afetação de iniciante: bastam dedos firmemente delicados, um pano limpo e a solução de níquel e prata que ele prepara no fogareiro do quarto do fundos, tornado oficina. Abre com cuidado o faqueiro de interior de veludo e com o látex e a precisão cirúrgicos de uma luva segura o dobrão português; o primeiro da coleção, aquele cujo valor reside não no preço de mercado, mas na carga sentimental que aquelas quase dez gramas de latão ordinário embutiam em algum lugar. A ordem reluzentemente cronólogica das moedas reflete a satisfação de João em um mosaico. Quase quarenta círculos a refletir o rosto paciente. Fecha um dos olhos para enxergar melhor - isso não é afetação, é profissionalismo amador - aproxima e se admira com a efígie de João V ainda estar bem delineada contra o azinhavre do resto da superfície; de contornos roídos, a moeda conserva só o aspecto de pertencer há tempo demais às mãos do colecionador.

As tardes na chácara da avó, logo aquela que disciplinara na mãe a rigidez polida do tratamento com crianças parente e agora não, só sorria ao ver o netinho querido subir em árvores e o punha no colo a contar histórias de tesouros sepultados pela areia do fundo do oceano, guardados por tritões de poucos amigos. As tardes ensolaradas de perseguir galinhas com gritos em férias que o faziam saltitar por excesso de não ter com que se preocupar o tornaram livre para achar o baú sepultado num fundo falso dos vincos na madeira avermelhada do oratório do quarto da avó. Único cômodo vedado às mãozinhas ávidas do neto único, última fronteira do desbravamento que a avó incentivou, infância adentro. Se esgueirou. Uma divisa que João cruzou ao se esconder sob os rangidos matinais dos bocejos da cama, respirava pesado de ansiedade por que a avó fosse repôr o alpiste dos periquitos. Aos pés que se queriam calados, a madeira respondeu com grunhidos que denunciavam a trajetória, curta angústia entre a cama e oratório que abriu com o desdém de quem creu já ter conseguido. Ágil sob a estátua de santo, de olhos bem apertados para dar sorte, apenas enfiou a mão para dentro das portas e o toque frio daquilo pequeno que recolhe entre os dedos dá pressa. 

A avó o surpreendeu no corredor esbaforido e nada indagou: afável por trás dos óculos. O dobrão foi a primeira moeda da coleção, descobriu no quintal vasto o desejo do peso de tatear de novo o quarto e não voltou.

As bordas do metal retiveram em alguns pontos o trabalhado das listras; no verso à caravela faltam uma vela e parte do casco, mas tudo bem, já não estavam lá na manhã em que tremeu durante o café de medo que a avó desse pela falta da moeda. Ela nunca contara algo sobre aquele tesouro durante as sessões de histórias em seu colo macio indo e vindo ao sabor da maré da cadeira de balanço, e a família não foi lá tão rica como para ficar empoçando dinheiro sob colchões e oratório, mesmo assim a mão no bolso apertando firme o que descobrira havia uns minutos em seu quarto ser uma moeda velha, dava a sensação de sorte de ter aquela avó, a quem não tinha impressão de estar roubando. A impressão era a de ser um cavaleiro das histórias dela, alguém bonito e valente.

Não sem fastio ignora um telefone que berra. Cogita usar o algodão com que finaliza o tratamento das suas preciosidades para tampar os ouvidos, sempre é alguém querendo vender algo e quase sempre não sabem seu nome sequer: o nomeiam senhor, para qualquer eventualidade. Hoje, quem sabe seu nome - à força de repetição - são só as moedas. Vindos de fora daquela oficina tornada uma concha: refúgio e memória, João só obtém incômodos. E a ligação para cancelar o telefone só traria mais aborrecimento. O dobrão cheira como as histórias que cheiram como a avó, que descobriu o roubo. Já ensinado a ser portar direito à mesa se denunciou; os farelos de biscoito aderidos à mancha de café derrubado na toalha. E a princípio, o rosto de contrariedade daquela que não sabia como agir frente a um neto querido que até ali não precisara de dinheiro optou por dar-lhe uma palmada estrategicamente mais sonora que dolorosa e depois consolo. A confissão de que em um dia que em breve estaria às portas daquela chácara todas as moedas, não muitas, seriam de João, que sorriu contido à simpatia da avó: tudo bem que não devolvesse a moedinha, só tinha um valor que não subtrairia muito ao baú.

Depois de muito tempo só com aquela, logo após começar a juntar de verdade, João detestava conversar com suas moedas: elas retrucavam mal, força do hábito de passar de bolso em bolso sem serem consultadas para nada. Acostumou-se a um palavrório que, mais que arrogante, encobria docilidade temerosa por trás da secura.

Ao escutar baterem à porta, jura que um dia ainda isola acusticamente a oficina. Mais trabalho cancelar a porta que a linha de telefone: pousa o seu quinhão de história no almofadado ao lado das outras moedas, perfiladas, em posição de sentido para qualquer emergência e vai atender a contra-gosto, bufando por dentro, sem deixar que os olhos dos quadros no corredor percebam. Educação acima de tudo. Avança lentamente. Afivela o cinto felpudo do roupão puído para cobrir sua miséria de pelos no peito, liga a torneira de um lavabo que fica à direita no corredor, lava as mãos: só quer se livrar dos resquícios metálicos da torneira e das moedas. Ajeita a moldura de um espelho que julga torto, espanando do aço um pó imperceptível. Ao pentear o cabelo com os dedos, rapidamente, o sente oleoso do esforço concentrado de até agora há pouco. Destranca a porta para um pregador religioso, cuja cabeça se movendo para cima e para baixo avalia se aquela figura emoldurada pela madeira recém-aberta é digno de comprar sua salvação por meio de doar dinheiro, comprar bíblias.

A sua primeira moeda que o convenceu. O perdão da avó pela moeda roubada à vista do santo incluíra recolher as migalhas que deixara cair, o que queria dizer que teria de se abaixar e no quarto minúsculo (teto de madeira, paredes de toalha branca de mesa) que era o vão sob a mesa da sala de jantar catar o farelo que seu nervosismo deixara escorrer por entre os dedos. Foi no exíguo desse claustro que a moeda se desvencilhou do bolso e tilintou ao cair no chão; ao recolhê-la, ouviu um nítido pedido de que não a retornasse ao baú em nenhuma circunstância, que a tratasse bem porque traria sorte. O susto da voz desconhecida metálica estridente fez João levantar de uma vez, bater a cabeça no tampo da mesa; sobressaltando a avó, terminando de derrubar os utensílios que ela depois de um tempo e esforço recompusera a seus postos.

Por cima da ombreira casposa do terno preto do homem com expressão de cérebro lavado à sua frente, João viu um pássaro planar no corredor, ia descendo na diagonal como se caçasse um verme de rodapé, mas João não acompanhou sua trajetória por muito tempo; só o tempo de esbarrar com o desconcerto nos olhos do pregador, que revira os bolsos sem olhar.

- O senhor conhece a palavra de deus? Sabia que ele morreu para nos salvar?

- Você vai me desculpar, mas eu estou muito ocupado agora.

- É só um minuto - alcança a bíblia que João toma nas mãos com quase nojo -, que pode custar sua salvação.

- Não me interessa, obrigado, católico.

- Quer me convidar a um café, para conversarmos melhor?

- Não me interessa, obrigado.

Fazer menção de fechar a porta educadamente leva o homem, que não dera o nome, a travar a porta com o pé violento, entrar no corredor

- permita-me a intromissão - sob gestos aterrorizados que João fazia por causa da lama em seus sapatos. Apoiando a bíblia no aparador de madeira - primeiro móvel de quem entra no apartamento -, começa a vasculhar este móvel a partir das gavetas, como se lembrasse da posição dos objetos que buscava. Com a cabeça para fora, olhos a um lado e outro do corredor, João vê no vão que dá para as escadas dois homens de braços cruzados conversando audível em uma língua desconhecida. Sem se decidir por fugir ou interpelar ou o homem que invadiu, ou os homens a espera; os passos largos corredor adentro só querem chegar à oficina e recolher o faqueiro, quem sabe se também o pano e o frasco com borrifador na ponta, que contém o produto de limpeza. Só vai encontrar o homem, que sumira do campo de visão, já dentro do quarto, sem palavras a mostra; revirando a mesa, mexendo no fogareiro, eviscerando o estofo da cadeira com um canivete. Um canivete que apontou para João, que a esta altura, faqueiro como um bebê entre os braços, se dirigia à saída, evitava salvação naquele dia. Um canivete cujos pontos de ferrugem causaram calafrios em João, que ajoelhou a pedido do homem. Um canivete cuja ponta enxergava a estreiteza do quarto de um ângulo em que seria possível perfurar qualquer reação de João antes mesmo que ela acontecesse. O homem tirou de debaixo da mesa a estátua, maneta agora, tombada, do mesmíssimo santo da avó; o que supervisionara as mãozinhas retirando uma moeda do mar de moedas que o baú continha. Bateu com os dedos fechados na madeira do corpo da imagem até achar um ponto cujo som reverberasse diferente para dentro. Com o canivete esgravatou, perfurando a tinta da túnica, penetrando o santo por uma costela até chegar a uma concavidade que supôs oca ao percutir.
Resignado, João se encolheu crendo imitar suas moedas, que naquele instante calavam a algaravia que a reluzência provocava. Omitiam-se em ajudar como das outras vezes difíceis, em que sempre tinha uma delas - o dobrão português, de preferência - por perto para aconselhar e dar força. E mesmo ajoelhado permitiu a suas mãos rápidas abanar um tênue manto de poeira que a luz oblíqua da lâmpada tornava visível. As protegia entre os braços.
- O faqueiro não interessa, senhor, é mixaria.

- Tudo bem. Já tem o que quer? Pode me deixar em paz? - a boca tremulando por palavras que recém-aprendiam a andar.
A bofetada no rosto pedindo respeito, antes de ir embora ressoa aos ouvidos de João como a palmada da avó educativa, sendo que agora ao invés de ouro achado envelhecido, perdia um resto brilhante da herança que lhe legara. O homem cerra a porta com delicadeza, o estalo do trinco e as chaves entrechocando do lado de dentro asseguram que está tudo bem de novo. O santo perfurado e João não se atreve a mover por medo de que suas moedas percebam o que aconteceu. Percebam que foi tudo como na tarde daquele dia há quarenta anos: o dia em que para ensinar religião, a avó o fez ajoelhar e jurar na frente daquela estátua, ignorante àquela altura, as verdades com que o pregador o agrediria no futuro. Milho sob joelhos exaltados. Rezou, rezou a tarde inteira, a moedinha já era parte dos seus parcos pertences de criança, mas sempre era preciso expiar um pecado adicional ou outro. Prestando atenção no que tinha à sua frente: a porta que encerrava o baú, maquinalmente as palavras comprazeram a velha. Degringolou quando errou a oração do santo de que a avó era devota, aquele que tinha justo em frente, inaugurara uma inédita discussão com ela, em que foi acusado ladrão, mau-caráter, profanador e mesquinho, ao que respondeu tímido com as ironias que o ateísmo do pai lhe inculcara. A avó corpulenta do menino franzino. O santo fez vista grossa às palmadas que se empolgavam nas nádegas do netinho. A discussão começou a xingar a parte da família que  não descendia da avó, a parte que não lavava os talheres nem engomava as roupas nem usava sais de banho. Ofendido, além de arrastado casa afora; ao chegar à cozinha, foi surrado em frente aos cinco ou seis empregados do casarão. Tentou esconder-se sob uma mesa, de onde foi enxotado a vassouradas.

- Ateu! Ateu! Ateu! – Os empregados que vieram só assistir, juntaram-se à avó no coro que crescia e se elevava por sob a paz do pomar.                
Tudo era inédito até a cozinhava ser palco. A avó convidou os empregados a curar a tendência de João ao roubo dando cada um uma palmada em sua mão: um ridículo que achou desnecessário esquecer desde que ninguém o acusara de nada, quem foi preso foi um serviçal que disseram ser amante ambicioso da avó. Manteve intacto porque nem tudo na vida eram conseqüências. No segundo em que viu o sarcasmo estampado nos dentes com restos de couve de uma serviçal, decidira. Nesta mesma noite envenenou a água em que a avó depositava a dentadura antes de se deitar para dormir.

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