se algum náufrago tentasse alcançar a nado os rochedos da costa
para se livrar de uma morte
certa,
uma bala no ombro quebraria seu
braço, impedindo-lhe de alcançar seu propósito.
No pior momento da tempestade,
vi, nadando a esforço
entre as ondas, uma cabeça
enérgica com os cabelos eriçados.
Lautréamont.
O Tomás
passou aqui em casa às cinco. Fez festa na cabeça do Piloto, o Piloto apoiou as
patas na calça do Tomás de ir ao culto e rosnava. A casa está reformando, minha
mãe sempre reclamando quando a gente escala os montinhos de terra e argamassa
na frente da casa, faz guerra de lama e tal. Resultado, duas rodelas
embarreladas na melhor calça do Tomás. Não entrou, só abri a portinha do portão
para ele ficar esperando enquanto eu buscava a mochila. Ele cumprimentou a
minha mãe também, a janela da cozinha dá para a rua e, pelo que ele disse mais
tarde do nada e para nada, as manchas no avental dela fizeram ele se sentir
melhor com as manchas na própria roupa. Dentro de casa, uma bagunça, os
pedreiros sujam e tiram tudo do lugar. Demorei a achar a mochila e as
furadeiras não deixavam ouvir o Tomás chamando meu nome. Quando achei a mochila
e peguei o boné, o Tomás tinha entrado e agradecia à minha mãe, mas estava sem sede
nem nada. Fui encher a garrafinha de água enquanto minha mãe perguntava a ele
como a família dele estava e mais coisas que não deu tempo de ouvir. Também
gritava para a Amália sair do computador. Já eram cinco e vinte no relógio do
microondas, apressamos o passo. O Tomás deu tchau para a minha mãe e para a
minha irmã, meio que tentando encobrir a nossa pressa. Passei pela porta
primeiro, o Tomás não sabe cuidar com o Piloto e ele escapou. Veio nos seguindo
até o fim da rua, até eu perceber. O Tomás olhou para mim com cara de que tinha
sido ele que tinha sido pego no flagra quando eu disse que sempre tinha que
verificar se a porta estava bem fechada, senão o Piloto escapava ou entrava
alguém, uma vez, de dia, aproveitaram a porta aberta, entraram e levaram a
bolsa da minha mãe de cima da mesa de jantar. Ele sentou no meio-fio, eu
prometi que voltava em um segundo. O céu fechava. Ergui o Piloto nos braços,
voltei os trezentos metros da rua com os braços doendo. O Piloto engordou
depois de velho. Prendi com a coleira e assomei a cabeça pela janela. A minha
mãe estava picando cenoura numa tábua em cima da mesa, dei oi e tchau de novo e
pedi para ela trancar a porta. O meu amigo ficou concentrado em sintonizar um
radinho de pilha e nem reclamou da demora. A gente usa o radinho como relógio,
tem uma emissora aqui em São Roque que dá as horas de dez em dez minutos. Puxei
o braço dele para ajudar a levantar. Fechou o zíper da mochila antes de
pendurar nas costas. Virando a esquina, ele respirou fundo e expirou várias
vezes rápido, tipo se concentrando, fez uns alongamentos também. Eu tenho como
jurar que ele naquela concentração, ele só podia estar tentando decorar a rua.
Sorte que a casa do Rodrigo fica na rua debaixo da minha, senão estaríamos
atrasados. A casa dele é maior que a minha e ele é filho único, mas ele não tem
cachorro. Dois a um para ele. Nunca entrei na casa dele. Só o Josias que conta
que entrou uma vez e foi expulso pela mãe do Rodrigo porque estava de tênis
dentro de casa. Na história, na sala tem uma estátua imensa de leão e nenhum
móvel. Ele nega essa história e diz que nunca nos convidou por causa de uma
doença da avó dele. O Rodrigo encostado no portão, a perna dobrada e a sola do
tênis contra a parede, mexendo na mochila dele. Vista de longe, a fumaça do
cigarro se camuflava na cor das nuvens. Mistérios da vida, os pais do Rodrigo
sabem que ele fuma e deixam. Não paramos para esperá-lo, só chegamos perto o
suficiente para ele nos ver, acenamos e demos meia-volta. A estação ficava na
direção contrária. Não tão perto, e pelo rádio já era cinco e meia. Subimos por
umas pirambeira aonde o asfalto ainda não chegou. Passamos por baixo de algumas
cercas, mais fácil cortar caminho do que passar em frente ao posto de polícia.
Os carrapichos grudavam nos pelos da minha canela e à calça boa do Tomás.
Suarentos e sem ar, a certa altura abrimos o Cantina da Serra que estava na
mochila. O Rodrigo recusou. Nem parecia que custava esforço para ele subir, a
roupa dele continuava limpa mesmo depois do matagal. O mormaço do dia deixa
cada passo oito vezes mais pesado. O Rodrigo praticamente flutuava por entre
aquelas pastagens abandonadas, sem ligar para arame farpado nem cupinzeiro nem
nada. Eu e o Tomás nos arrastamos morro acima, pedindo silêncio ao nosso amigo,
os dois ouvimos ao longe o barulho de alguém querendo nos encontrar. As árvores
eram a exceção em meio ao mato ralo. Sorte que os quero-queros nem queriam nada
com a gente. No ar carregado ressoavam uns latidos se afastando e se
aproximando em volta da gente. Depois de um tempo, tanto fez. Cruzamos a última
cerca tarde. O locutor já tinha informado as cinco e quarenta havia um tempo. O
Tomás falou que era melhor ficar mais escondido, por perto da casa do zelador
da estação. Na plataforma com certeza alguém passando na rodovia lá atrás nos
veria e ligaria para a polícia. Sempre umas lonas carcomidas penduradas no
varal do quintal dessa casa, dava para se esconder no meio delas. Limpamos os
gravetos e um pouco da poeira para poder sentar de pernas cruzadas sobre uma
lona caída e pusemos os dois vinhos e o cheetos. Impossível nos verem. Não sei
por que o Rodrigo trouxe velas. Sei que elas ajudaram a iluminar um pouco o
abrigo, o céu opaco acinzentava ainda mais. Servi o vinho em copos descartáveis
que também saíram da mochila do Rodrigo. O Tomás riu das frescuras dele e eu
acompanhei. O Rodrigo não deu conta de ficar bravo e disse que merda de dia
você escolheu, algum último pedido? Eu afastava as lonas, achava que tinha ouvido
um bicho ou alguém. O Tomás falou para todo mundo relaxar, ainda tinha vinte
minutos, e tirou de um bolso uns guardanapos de papel, dos vagabundos do
refeitório da escola. Mas o mais importante estava na minha mochila, num bolso
interno que na época eu achava que era secreto. O baseado foi passando de mão
em mão cada vez mais babado. A grossura da lona interferia no rádio. Vomitando
estática, a vozinha do locutor não chegava. E para piorar ainda tinha o barulho
da rodovia e os pássaros de uma árvore enorme que praticamente cobria o telhado
da casa. Começamos a ficar daquele jeito que a gente fica. Não tenho certeza de
se os meus amigos entenderam quando eu disse que não teríamos como saber a
hora. O Rodrigo enrolava mais forte a seda que tinha se soltado mas respondeu
que daria para descobrir porque o chão e os trilhos trepidariam. Entre bocejos,
o Tomás avisou que as garrafas só davam para meia hora mesmo, quando acabasse,
a gente ia embora. Relaxei um pouco. Um pássaro pousou num espaço livre de
barbante no varal, deve ter observado o Tomás deitado com os pés para fora das
lonas. O pássaro deve ter visto também o Tomás tirar um cantil da mochila e nos
oferecer. Cada um deu um gole no gosto ardido de terra e fingiu que gostou.
Depois de devolver o cantil, o Rodrigo resolveu que já estava na hora. Fui
encarregado de ir até os trilhos vigiar se não vinha ninguém. Levei o radinho e
mexi na antena, mas não consegui fazer ele falar. É o morro que atrapalha o
sinal. O silêncio era tanto que fez pensar que algo estava prestes a acontecer.
Corri até a curva do trilho e não vi nada. O barulho dos meus pés contra as
britas aliviou do silêncio, quase tropecei em um dormente do trilho. Voltei
correndo, sem ter sentido o trilho vibrar. No que eu abri as lonas para chamar
os dois, ele se assustaram, vi o Tomás ajoelhado levantar depressa, limpar a boca.
Tinham jogado a ponta do baseado fora, o cheetos tinha acabado, pocinhas de
vinho manchavam mais a calça que o Rodrigo se apressou em subir. Me desentendi
da tosse dos dois que não sabiam onde colocar a cara, tosse de engasgo de quem
foi flagrado. Não pedi explicação e eles também não me deram. Passamos direto
para o próximo assunto. O rádio não dava som e eu disse ao Tomás que era melhor
ele já ir para perto dos trilhos. O Rodrigo largou o lixo para trás e veio
trazendo as mochilas vazias. Sentamos na plataforma, balançando as pernas. Os
três calamos para ouvir o trem. Os chiados dos carros na rodovia e do rádio
retornaram ao mesmo tempo para nos atrapalhar. O Tomás se apoiou com os braços,
para escalar a vala do trem e subir na plataforma. Uma fresta nas nuvens lançou
um raio de sol na curva. Não entendi a voz lá no fim da transmissão de rádio. O
Rodrigo pousou a mão dele sobre a do Tomás achando que eu não estava vendo, ou
até aprovava esse tipo de coisa. Ambos sorriam. As nossas respirações pesadas
tentavam adivinhar o que ia ser dessa vez. O Tomás tomou fôlego e desceu a
plataforma, ficou com cada perna apoiada em um trilho. O Rodrigo reclamou da
falta de vinho para a hora mais importante. Numa idéia de última hora de voltar
para a plataforma, o Tomás recusou a minha ajuda e pegou na mão do Rodrigo para
terminar de subir. Na plataforma, ele olhou no fundo dos olhos do Rodrigo e
disse que o amava. Não sei quem arregalou mais os olhos dos três. Avisei que o
trem estava chegando. O Tomás voltou para os trilhos brabo comigo porque eu
interrompi. Não consegui olhar na cara de ninguém. Alcei um pouco a vista e vi
que os dois se encaravam segurando choro, olhei para o outro lado. E nada do
trem, eu tinha mentido, na verdade, para ver se o Tomás calava a boca. Se não
fosse aquele, só dali a cinco dias. Dei umas porradas no radinho. A esta altura
o Tomás já deitara de través dos trilhos. A cabeça invisível emborcada para
trás sem apoio e a imundice da roupa disfarçariam ele de lixo solto. O Rodrigo
tentou me conter, disse que não adiantava o esforço. Mas eu não parei até jogar
o radinho no chão. Quando eu peguei surgiu uma voz engrolada. O sinal
continuava péssimo. Só consegui captar o locutor nervoso. Parece que as
atividades da linha de ferro Sorocaba-São Roque tinham sido interrompidas por
um suicídio.
O Rodrigo pegou
a mochila do Tomás para carregar. Escolhemos o caminho de sempre, o mais longo
e que passa pelo posto da polícia. Antes de sairmos de vez da estação, no saguão,
ouvimos um barulho que vinha da plataforma e não era de policial. Os dois saíram
correndo para ver o que era e me deixaram para trás. Chegaram até a porta que dá
para a plataforma e espreitaram. Eu parei, sentei num banco menos quebrado,
respirei, à espreita de algo. Mas esse algo por enquanto era só o barulho de alguma
coisa raspando. Eles não conseguiam enxergar dali o que era, o céu nublado mesclava
os vultos: a plataforma perdeu o telhado em uma ventania, além do mais já era
quase noite. A plataforma do trem é um vão livre, dá para enxergar de fora a
fora. O único obstáculo é o quiosque de atendimento atrás do qual vinha o tal
barulho. Os dois foram lá ver. Esperei para conferir se não era o vento castigando
a madeira velha das pilastras. Antes de largar de mão, fui ver onde estavam os
meus amigos, antes eu não tivesse ido. Com o maior cuidado, cheguei perto da
entrada e pus a cabeça para dentro da plataforma. Vazio, sem sinal do Rodrigo
ou do Tomás. Eles deviam estar se beijando em algum lugar escondidinho. No que
o radinho morreu de vez, culpei as pilhas e o mau contato por terem me feito
raiva e me feito atirá-lo com raiva na via do trem, espatifou lá embaixo. Alguma
coisa ainda perturbava a quietude. O ruído vinha mesmo de trás do quiosque. E
soava mais tipo alguém roendo. Poderia ser um animal ou os meus dois ex-amigos me
vendo e rindo do meu medo. Do nada, a tremedeira da terra me distraiu. O
estrondo crescente afugentou os pássaros empoleirados nas vigas. O concreto
sacudiu, levantou nuvens de poeira menores do que as nuvens lá no fim da curva.
Não tem como não ficar bobo vendo o trem passar desembestado. Firmei os dedos
nas alças da mochila, me segurei, passou. Segui com os olhos até perder de
vista. Até o vento ficou agitado, avisando chuva. No que eu voltei a mim,
esquecido do barulho, alguma coisa passou perto por mim, muito rápido. Já
estava pegando o rumo de casa. Larguei de mão, achei que o borrão branco no
canto do olho e os ecos no cimento cru eram qualquer rato. Me apressei por via
das dúvidas. Dei a mim mesmo o pretexto de ter escutado as vozes do Rodrigo e
do Tomás lá embaixo do caminho já. Algumas gotas passaram direto pelo teto do
saguão para molhar o meu tênis e minha blusa. Tropecei no fim da escadaria.
Consegui ouvir os risinhos do Rodrigo mesmo com o vento. Os dois tinham achado
abrigo debaixo de uma árvore à esquerda, o Rodrigo fumava um baseado que eu não
sei de onde ele tirou, o Tomás tinha se afastado um pouco para fazer xixi. Escalei
um pouco até um galho baixo também e me passaram o baseado. O Rodrigo começou a
tentar descascar uma manga e mesmo depois de se engasgar não parou de rir.
Gritei para o Tomás prestar atenção se não via algum radinho de pilha no meio
do mato. Ele levantou a mão bem alto em um sinal concordando. Quando ele voltou
do mato, continuava tão limpo quanto sempre, e respondeu que eles não tinham
descoberto o que era o barulho, o Rodrigo riu disso também. Respondi que não e
ele disse que devia ser um saruê ou algo. Devolvi o baseado com vergonha de
perguntar o que é um saruê. O vento levantava pedaços de papelão e sacos
plásticos. Na maior parte do ano, os bancos da praça da estação servem de
dormitório para mendigos. Na outra parte, servem para apoiar comida e bebida.
Desde que proibiram de soltar fogos na praça da matriz, as festas da cidade
acontecem em frente à estação. O Rodrigo testa a resistência de um barbante
amarrado em um galho perto. O vento ainda não despregou algumas bandeirinhas do
barbante. O Tomás preferiu ficar embaixo da árvore. Ele me deu dedos quando eu
chamei ele de cagão. O Rodrigo pediu para o Tomás dar pézinho para ele alcançar
o barbante. Falei que era perigoso por causa do vento, aí o Tomás riu e me
chamou de cagão. A corda unia o galho a um poste na calçada. As mãos dele
aguentaram bem até a metade do caminho. O corpo rodou no ar como um balão
esvaziado e caiu. Ele disse que estava tudo bem. A queda era de nada, uns três
metros no máximo. E ele ainda caiu bem em pé, mas saiu mancando. Eu e o Tomás
emprestamos os ombros para o Rodrigo se apoiar. O arrastaríamos por pelo menos
mais vinte minutos. O breu mal revelava os prédios roídos da alameda da
estação. Um ou outro gemido do Rodrigo quebrou nosso silêncio.
Acordei com
o cheiro de desinfetante. Acordei com os chiados vindos de debaixo do cobertor
da minha irmã. A minha cama fica em cima da cama da Rosa Amália, mas a
diferença de altura é pouca. Consigo tocar o colchão dela com o braço deitado
na minha cama porque a gradezinha que me protege de cair quebrou. Levantei o
cobertor e descobri irmã e rádio de pilha, igualzinho ao que eu perdi. Ela
cobria com o dedo, mas esse radinho tinha até um arranhão no lugar onde ele
deve ter batido quando eu joguei. A Rosa Amália olhou para cima sem entender. E
com sono mesmo foi dizendo que se eu não desse o radinho de presente para ela,
ela contaria para a mãe que o Tomás e o Rodrigo se beijaram. E que o Rodrigo
fumava. Tentei dar uma mãozada na Rosa Amália por falar isso alto. Ou pelo
menos tentei roubar o radinho. Aconteceu em um segundo. Só sei que depois de desviar
o rosto, ela segurava o meu braço muito estendido. Mandei ela não puxar. A Rosa
Amália nem teve tempo de me fazer prometer que o rádio era dela. Quando vi já
estava estatelado de costas no chão. Minha mãe veio ver o que era o baque.
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