sábado, 12 de fevereiro de 2011

Noves fora.

Se algum náufrago tentasse alcançar a nado os rochedos da costa
para se livrar de uma morte certa,
uma bala no ombro quebraria seu braço, impedindo-lhe de alcançar seu propósito.
No pior momento da tempestade, vi, nadando a esforço
entre as ondas, uma cabeça enérgica com os cabelos eriçados.

Lautréamont.



O Tomás passou aqui em casa às cinco. Afagou a cabeça do Piloto, o Piloto apoiou as patas na calça do Tomás de ir ao culto e rosnava. A casa está reformando, no pátio da frente montinhos de terra e argamassa. Resultado, duas rodelas embarreladas na melhor calça do Tomás. Não entrou, só abri a portinha do portão para ele ficar esperando enquanto eu buscava a mochila. Ele cumprimentou a minha mãe também, a janela da cozinha dá para o pátio e, pelo que ele disse mais tarde, as manchas no avental dela fizeram ele se sentir melhor com as manchas na própria roupa. Dentro de casa, uma bagunça, tudo empoeirado e fora do lugar. Demorei a achar a mochila e as furadeiras, as marteladas e as betoneiras não deixaram ouvir o Tomás chamando meu nome. Quando achei a mochila e peguei o boné, o Tomás já tinha entrado e agradecia à minha mãe, e respondia que não tinha sede nem nada. Fui encher a garrafinha de água enquanto minha mãe perguntava a ele como a família dele estava e mais coisas que não deu tempo de ouvir. Também gritava para a Rosa Amália sair do computador. Já era cinco e vinte no relógio do microondas, apressamos o passo. O Tomás deu tchau para a minha mãe e para a minha irmã, que corou imediatamente. Passei pela porta primeiro, o Tomás não sabia lidar com o Piloto e ele escapou. Veio nos seguindo até o fim da rua, até eu perceber. O Tomás olhou para mim com cara de que tinha sido ele que tinha sido pego no flagra quando eu disse que sempre tinha que verificar se a porta estava bem fechada, senão o Piloto escapava ou entrava alguém para roubar material de construção. Ele sentou no meio-fio, eu prometi que voltava em um segundo. O céu fechava. Ergui o Piloto nos braços, voltei os trezentos metros da rua com os braços doendo. O Piloto engordou depois de velho. Prendi ele com a coleira e assomei a cabeça pela janela. A minha mãe estava picando cenoura numa tábua em cima da mesa, dei oi e tchau de novo e pedi para ela trancar a porta. O meu amigo reclamou da demora, concentrado em sintonizar um radinho de pilha. A gente usa o radinho como relógio, tem uma emissora aqui em São Roque que dá as horas de dez em dez minutos. Puxei o braço dele para ajudar a levantar. Fechou o zíper da mochila antes de pendurar nas costas. Virando a esquina, ele respirou fundo e expirou várias vezes rápido. Com os olhos apertados, eu posso jurar que ele estava tentando decorar a rua de relance. Sorte que a casa do Rodrigo fica na rua debaixo da minha, senão estaríamos atrasados. A casa dele é maior que a minha e ele é filho único, mas ele não tem cachorro. Dois a um para ele. Nunca entrei na casa dele. Só o Josias que conta que entrou uma vez e foi expulso pela mãe do Rodrigo. Na história, na sala tem uma estátua imensa de leão e nenhum móvel. Ele nega essa história e justificando nunca ter nos convidado por causa da doença da avó dele. O Rodrigo encostado no portão, a perna dobrada e a sola do tênis contra a parede. Vista de longe, a fumaça do cigarro se camuflava na cor das nuvens. Os pais do Rodrigo sabem que ele fuma e deixam. Não paramos para esperá-lo, só chegamos perto o suficiente para ele nos ver, acenamos e demos meia-volta. A estação ficava na direção contrária. Não tão perto, e pelo rádio já era cinco e meia. Subimos por umas ladeiras aonde o asfalto ainda não chegou. Passamos por baixo de algumas cercas, mais fácil cortar caminho do que passar em frente ao posto de polícia. Os brotos de capim grudavam aos pelos da minha canela e à calça boa do Tomás. Suarentos e sem ar, a certa altura abrimos o Cantina da Serra que estava na mochila. O Rodrigo recusou. Nem parecia que custava esforço para ele subir aquelas ribanceiras, a roupa dele continuava limpa mesmo depois da lama. O mormaço do dia tornava cada passo oito vezes pesado. O Rodrigo praticamente flutuava por entre aquelas pastagens abandonadas, sem ligar para arame farpado nem nada. Eu e o Tomás nos arrastamos morro acima, pedindo silêncio ao nosso amigo por termos ouvido ao longe o barulho de alguém querendo nos encontrar. As árvores eram a exceção em meio ao mato ralo. No ar carregado ecoavam ladridos dos cachorros. No mais das vezes, andamos sem preocupação. Cruzamos a última cerca tarde. O locutor já tinha informado as cinco e quarenta havia um tempo. O Tomás falou que era melhor ficar mais escondido, por perto da casa do zelador da estação. Na plataforma com certeza alguém passando na rodovia lá atrás nos veria e ligaria para a polícia. Vimos umas lonas carcomidas penduradas no varal do quintal dessa casa. Sentamos de pernas cruzadas sobre uma lona caída e pusemos os dois vinhos e o cheetos. Impossível nos verem. Não sei por que o Rodrigo trouxe velas. Sei que elas ajudaram a iluminar um pouco o abrigo, o céu opaco acinzentava ainda mais. Servi o vinho em copos descartáveis que também saíram da mochila do Rodrigo. O Tomás riu das frescuras dele e eu acompanhei. O Rodrigo não deu conta de ficar bravo e disse que merda de dia você escolheu, algum último pedido? Eu afastava as lonas, achava que tinha ouvido um bicho ou alguém. O Tomás falou para todo mundo relaxar, sobravam vinte minutos. E tirou de um bolso um saquinho com erva e do outro guardanapos de papel, dos do refeitório da escola. O baseado foi passando de mão em mão cada vez mais babado. A grossura da lona interferia no rádio. Vomitando estática, a vozinha do locutor não chegava. E para piorar ainda tinha o barulho vindo da rodovia e os pássaros de uma árvore enorme que praticamente cobria o telhado da casa. Começamos a ficar tontos. Não tenho certeza de se entenderam quando disse que não teríamos como saber a hora. O Rodrigo ajeitava a seda que tinha se soltado do baseado mas respondeu que daria para descobrir porque o chão e os trilhos trepidariam. Entre bocejos, o Tomás afirmou que as garrafas acabariam antes da hora chegar. Relaxei um pouco. Um pássaro pousou num espaço livre de barbante no varal. Deve ter observado o Tomás deitando com os pés para fora das lonas, e só conseguíamos ver o tronco dele, as mãos juntas entre a cabeça dele o gole do Rodrigo. A quem o pássaro deve ter observado nos oferecendo um cantil. Cada um deu um gole na bebida ardida e com gosto de terra e fingiu que gostou. Depois de devolver o cantil ao Rodrigo, o Tomás resolveu que já era a hora. Fui encarregado de ir até os trilhos vigiar se não vinha ninguém. Levei o radinho e mexi na antena, mas não consegui tirar ele da mudez. É o morro que atrapalha o sinal. O silêncio era tanto que fez pensar que algo estava prestes a acontecer. Corri até a curva do trilho e não vi nada. O barulho dos meus pés contra as britas aliviou do silêncio, quase tropecei em um dormente do trilho. Voltei correndo, sem ter sentido o trilho vibrar. Abri as lonas para chamar os dois. De repente se assustaram, responderam que o beijo era só despedida. As garrafas tombadas derramavam vinho, o cheetos tinha acabado. Pequenas poças vermelhas manchavam a lona com que que forramos o cão. Manchavam a calça que agora o Tomás se apressava em vestir de novo. Me desentendi do abraço demorado dos dois. Eles também não fizeram menção da minha presença. O rádio não dava som e eu disse ao Tomás que era melhor ele já ir para perto dos trilhos. O Rodrigo largou o lixo para trás e veio trazendo as mochilas vazias. Sentamos na plataforma, balançando as pernas. Os três calamos para ouvir o trem. Os chiados dos motores na rodovia e do rádio retornaram ao mesmo tempo para nos atrapalhar. O Tomás se apoiou com os braços, prestes a impulsionar o corpo inclinado. Abriu-se uma fresta no céu que lançou um raio de sol sobre a curva. Não entendi a voz lá no fim da transmissão de rádio. O Rodrigo pousou a mão dele sobre a do Tomás. Ambos sorriam. As respirações pesadas adivinhavam o que vinha a seguir. O Tomás tomou fôlego e desceu a plataforma, ficou com cada perna apoiada em um trilho. O Rodrigo xingou a falta de vinho para a hora importante. Uma idéia de última hora e Tomás à plataforma. Ele subiu o batente ignorando meu braço estendido e olhou no fundo dos olhos do Rodrigo quando pediu para ele acompanhá-lo. E disse que o amava. Não sei quem arregalou mais os olhos dos três. O Tomás ofereceu a mão para ajudar o Rodrigo a ficar de pé. Mas o Rodrigo negou disse que não ia com ele. Cabisbaixo por ser interrompido, o Tomás desceu aos trilhos de novo. Não consegui olhar no rosto dele, mas ouvi um murmúrio de choro. Vindo de duas direções. Alcei um pouco a vista e vi que os dois se encaravam sem parar de chorar, abaixei rápido a cabeça. E nada do trem. Se não fosse aquele, só no dia seguinte. Dei umas porradas no radinho. A esta altura o Tomás já deitara através dos trilhos. A cabeça invisível emborcada para trás sem apoio e a imundice da roupa disfarçariam ele de lixo solto. O Rodrigo tentou me conter, disse que não adiantava o esforço. Mas eu não parei até jogar o radinho no chão. Quando eu peguei surgiu uma voz engrolada. O sinal continuava péssimo. Só consegui captar o locutor nervoso. Parece que as atividades da linha de ferro Sorocaba-São Roque tinham sido interrompidas por um suicídio. 

O Rodrigo me passou uma das mochilas para eu carregar. Escolhemos o caminho de sempre, o mais longo e que passa pelo posto da polícia. Antes de sairmos pela porta principal da estação tivemos um sobressalto. Algo se movia na outra ponta da plataforma. De repente, estava sozinho. O Rodrigo e o Tomás correram de ouvir os barulhos de toalha arrastando. Iam indo em direção ao saguão sem perguntar de mim. Eu parei, respirei, à espreita de algo. Mas esse algo por enquanto era só o barulho. O nublado não permitia sombras. A estação perdeu o telhado em uma ventania, além do mais anoitecia. A plataforma do trem é um vão livre, dá para enxergar do outro lado. O único obstáculo é o quiosque baixo de onde vinha o tal barulho. Esperei para conferir se não era o vento batendo na madeira velha das pilastras. Antes de chegar perto, fui ver onde estavam os meus amigos. Com o maior cuidado, cheguei perto da entrada e pus a cabeça para dentro do saguão. Vazio, sem rastros do Rodrigo ou do Tomás. O radinho morreu de vez. Culpei as pilhas por me fazerem atirar o radinho com raiva pelo corredor. Assisti ele cruzar os portões e ouvi o baque da aterrissagem dele fora da estação, deve ter rolado escadaria abaixo. Mas algo ainda perturbava a quietude. O ruído vinha mesmo do quiosque. E soava como alguém roendo. Pensei que poderia ser um animal e que os dois deveriam estar me vendo e rindo do meu medo. Do nada, a tremedeira da terra me distraiu. O estrondo crescente afugentou os pássaros empoleirados nas vigas. O concreto sacudiu ao meu redor, levantou nuvens de poeira menores que as que assomaram lá do fim da curva. Não tem como não ficar bobo vendo o trem passar desembestado. Firmei os dedos nas alças da mochila, se eu não me seguro ele me jogava no chão. Segui com os olhos até perder de vista. Até o vento ficou agitado, avisando chuva. No que eu voltei a mim, esquecido do barulho, algum coisa passou reto por mim, muito por rápido. Já estava pegando o rumo de casa. Larguei de mão, achei que o borrão branco no canto do olho e os ecos de passinhos no cimento cru eram qualquer rato. Me apressei por via das dúvidas. Dei a mim mesmo o pretexto de ter escutado as vozes do Rodrigo e do Tomás lá embaixo do caminho já. Algumas gotas passaram direto pelo teto do saguão para molhar o meu tênis e minha blusa. Tropecei no fim da escadaria. Consegui ouvir as gargalhadas do Rodrigo mesmo com o vento. Os dois tinham achado abrigo debaixo de uma árvore à esquerda e fumavam outro baseado. O Tomás tinha se afastado um pouco para mijar. Por mais que eu procurasse, não achei a carcaça do radinho de pilha em nenhum lugar. Me sentei em um galho também e me deram de fumar. Uma manga meio descascada melava uma mão do Rodrigo. Mesmo engasgando, não parou de rir. Gritei para o Tomás prestar atenção se não via algum radinho de pilha no meio do mato. Ele levantou a mão bem alto em um sinal concordando. O Rodrigo continuava tão limpo quanto sempre e perguntou se eu tinha descoberto o que era o barulho. Respondi que não e ele disse que devia ser um saruê ou algo. Devolvi o baseado com vergonha de perguntar o que é um saruê. O vento levantava pedaços de papelão e sacos plásticos. Na maior parte do ano, os bancos da praça da estação servem de dormitório para mendigos. Na outra parte, servem para apoiar comida e bebida. Desde que proibíram de soltar fogos na praça da matriz, as festas da cidade acontecem em frente à estação. O Rodrigo testa a resistência de um barbante amarrado em um galho perto. O vento ainda não despregou algumas bandeirinhas do barbante. O Tomás preferiu ficar embaixo da árvore. Ele me deu dedos quando eu chamei ele de cagão. O Rodrigo pediu para o Tomás dar pézinho para ele alcançar o barbante. Falei que era perigoso por causa do vento, aí o Tomás riu e me chamou de cagão. A corda unia o galho a um poste na calçada. As mãos dele aguentaram bem até a metade do caminho. O corpo rodou no ar como um balão esvaziado e caiu. Ele disse que estava tudo bem. A queda era de nada, uns três metros no máximo. E ele ainda caiu bem em pé, mas saiu mancando. Eu e o Tomás emprestamos os ombros para o Rodrigo se apoiar. O arrastaríamos por pelo menos mais vinte minutos. O breu mal revelava os prédios roídos da alameda da estação. Um ou outro gemido do Rodrigo quebrou nosso silêncio. 

Acordei com o cheiro de desinfetante. Acordei com os chiados vindos de debaixo do cobertor da minha irmã. A minha cama fica em cima da cama da Rosa Amália, mas a diferença de altura é pouca. Consigo tocar o colchão dela com o braço deitado na minha cama porque a gradezinha que me protege de cair quebrou. Levantei o cobertor e descobri irmã e rádio de pilha, igualzinho ao que eu perdi. Ela cobria com o dedo, mas esse radinho tinha até um arranhão no lugar onde ele deve ter batido quando eu joguei. A Rosa Amália olhou para cima sem entender. E com sono mesmo foi dizendo que se eu não desse o radinho de presente para ela, ela contaria para a mãe que o Tomás e o Rodrigo se beijaram. E que o Rodrigo fumava. Tentei dar uma mãozada na Rosa Amália por falar isso alto. Ou pelo menos tentei roubar o radinho. Aconteceu em um segundo. Só sei que depois de desviar o rosto, ela segurava o meu braço muito estendido. Mandei ela não puxar. A Rosa Amália nem teve tempo de me fazer prometer que o rádio era dela. Quando vi já estava estatelado de costas no chão. Minha mãe veio ver o que era o baque.

1 contos de réis:

Anônimo disse...

Belezura. vou salvar link no meu blog.

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